Do beijo perdido
Sempre perco coisas pelo caminho. Tem aquele retrato do tempo em que fotografia era retrato e ponto. E ecoava na voz da vovó sempre forte - cadê aquele retrato do seu primeiro aniversário? Perdi. Uma hora aparece dentro daquela caixa de não sei o quê em que a gente guarda tudo, inclusive nada.
Um caleidoscópio, três pétalas de folha ressecadas, uma carta, ingresso do show da Bethânia, pedaços lamentáveis de um vinil quebrado, folhas soltas com palavras perdidas, poeira, e uma frequência de espirros entre o que se perde e o momento de abrir a caixa esquecida na estante.
O beijo. Encontrei. Camuflado entre uns textos abandonados, sem a menor utilidade aparente.
Klimt. Foi quase como reencontrar um velho conhecido, e ficar sem jeito, meio em descompasso, mas logo foi que nos sentamos, eu diante das formas e cores daquele beijo e uma garrafa de alguma coisa já terminada num canto do chão, restos de memórias em gotas. Abro a janela porque o clima por aqui parece mesmo estar numa esquizofrenia caótica, não sabe dele, nem eu, mas esquenta.
Engraçado, descobri a primeira tela desse surrealista-fantástico-místico-e o que mais quiser com uns 7 anos. Nem tela, nem arte, nem nada. Eram só 7 anos, nada fazia sentido ou pedia por ele, as coisas eram mais instintivas naquele tempo, e mais experimentadas também.
Criança leva quase tudo à boca, acho que levei a arte, foi num badulaque de confusões, LPs e livros que vi dobrada a imagem da minha mãe – bem, foi assim aos 7 anos. A cor e o gosto daquelas cores no colo de uma mulher tão doce só me fez sentir o afeto materno. As três Idades da Mulher, hoje eu sei, mas ainda é minha mãe, só que em outros traços e em cores mais densas.
Gustav Klimt, um marco de criação e expressão do simbolismo entre outras nuances artísticas do século XIX. Há que se conhecer os traços, os pedaços, as cores, as esquinas, as histórias por trás das tintas e a geometria inquieta destas obras.
É pintor simbolista, de telas, murais, esboços e outras criações em objetos inusitados. Destacou-se dentro do movimento Art Nouveau austríaco e foi um dos fundadores do movimento da Secessão de Viena, que recusava a tradição acadêmica nas artes. O Art Nouveau foi um estilo artístico que se deslocava das engessadas visões acadêmicas e suas barreiras às artes, assim como também reagia ao romantismo lírico.
Era o cotidiano que funcionava como fonte de inspiração e produções artísticas. Assim foi também para Klimt, e se refletiu nas suas obras. O ritmo acelerado da vida moderna deu o tom e a dinâmica necessária a este estilo modernista, quase tanto quanto pulsava aqui pra nós a paulicéia desvairada e os caminhos da nossa semana de arte moderna. Havia latente a intenção da subversão dos aspectos da produção em série, a arte se inspirava pelas formas, contornos e essências da natureza. A arte erótica também se manifestou nas últimas obras de Klimt, de maneira sutil e com contornos claramente expressivos, as pinturas ganharam ares de destaque do corpo e seus detalhes. Nem crítica da arte, nem avalição estilística. Aqui, que apenas (e muito) se sinta, como quem experimenta. Prova! Leva à boca! E alimentemos as nossas fomes cotidianas.
Klimt, em degustação...