Os sítios obscuros
Jacob Riis, "No fosso da pobreza", Nova Iorque, EUA, 1889
Colecções do MOMA, Nova Iorque, E.U.A.
A Fotografia, que aparece como prática viável em meados do século dezanove, sem história própria e limitada tecnicamente, socorreu-se, num primeiro momento, de modelos e temáticas que busca na artes maiores, sobretudo na pintura.
Praticava-se muito o retrato, a paisagem e a natureza morta, e alguns mais afoitos abalançavam-se nos tableaux vivants, encenações de momentos históricos ou ficcionais com recurso a modelos. Buscava-se composições equilibradas e pitorescas, almejava-se belas imagens. Mas a natureza "mecânica" do processo fotográfico alargou os praticantes muito para além da franja dos dotados para as artes, e rapidamente o mundo das imagens se tornou mais "democrático", mais aberto e inesperado. A Fotografia mostrou-se estranhamente capaz de se afastar das coisas belas e ideais, e de ser verdadeira.
Com ânsia documental, acercou-se dos sítios obscuros da sociedade e alma humanas. Mesmo entre os seus praticantes mais eruditos aparecem divergências em relação à tradição pictórica. Hugh Welch Diamond, um médico psiquiatra e fotógrafo, utilizando a técnica do calótipo, uma das primeiras vias de obtenção de imagem fotográfica, fez registos das feições dos seus doentes e da sua locomoção. O primeiro fotojornalismo, por acção de gente como Jacob Riis, também se dedicou à exposição dos excluídos e dos alienados. Mais tarde, esta temática acabaria por entrar no corpo central da fotografia mais autoral, mais "artística". Nomes como Diane Arbus comprovam-no.
Hugh Welch Diamond, Retrato de louca, 1852-54,
Colecções do J. Paul Getty Museum, Los Angeles, E.U.A.
Jacob Riis, Residente idosa, Esquadra de polícia de Eldridge Street, Nova iorque, EUA, 1890
Colecções do MOMA , Nova Iorque, E.U.A.
Diane Arbus, Homem com rolos de cabelo, Nova iorque, E.U.A, 1966
Arquivos do Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, E.U.A.
A par deste assalto mais informado ao lado marginal, há toda uma Fotografia vernacular que também a aborda. Fotógrafos comerciais que captam as figuras dos circos de aberrações e as fazem circular em postais e carte-de-visite, jornais sensacionalistas que seguem como rapaces as vítimas e os perpetradores de crimes, funcionários de esquadras e asilos que burocraticamente registam os seres da margem.
A maioria dessa Fotografia é desajeitada, tecnicamente medíocre. Mas alguma dela é surpreendentemente viva e competente, e atinge-nos com inesperada força.
O Justice & Police Museum de Sydney, na Austrália, alberga um fascinante arquivo de imagens forenses e de cadastro. Disponíveis online, com alguma informação escrita adicional, é facil perdermo-nos durante horas a vasculhar o submundo australiano de início do século vinte, numa viagem pelas estranhas e dramáticas histórias pessoais que conseguimos intuir nestas fotografias.
Um exemplo: Um tal Harry Leo Crawford aparece em três fotografias. De origem escocesa, casado em segundas núpcias com Elizabeth King Allison, funcionário de um hotel, aparentemente um cidadão dentro da normalidade, é preso em 1920, por suspeita do assassínio da primeira mulher.
autor desconhecido, Eugenia Falleni alias Harry Crawford, Sydney, Austrália,início de 1920
Colecções do Justice & Police Museum, Sydney, Austrália
Sete anos antes casara com a viúva Annie Birkett, uma empregada da residência do Dr. G. Clark, em Sydney, de quem era então motorista. Após quatro anos de matrimónio, Annie Birkett desapareceu e Harry informou os vizinhos de que havia fugido com um canalizador.
Em 1919, Harry casou novamente indicando no registo a condição de solteiro. Nesse mesmo ano, denúncias de familiares da sua primeira mulher levam a que a polícia investigue o desaparecimento. Finalmente, um corpo, encontrado desfigurado em 1917, é exumado e identificado como sendo o cadáver de Annie Birkett, e a 5 de julho de 1920, Harry foi detido.
Mas esta história real de intriga policial esconde uma torção existencial e de identidade. O escocês Harry Leo Crawford era a italiana Eugenia Falleni.
Nos arquivos do Justice & Police Museum são disponibilizadas três fotografias. A primeira (acima), encontrava-se numa capa de papel com a inscrição "Falleni Man/Woman" ( Falleni Homem/Mulher), apresenta-nos o suspeito em roupas de homem, na esquadra central de Sydney, provavelmente em 5 de Julho de 1920, o dia da sua detenção.
A segunda, feita no final desse ano, em 21 de Outubro, é já uma imagem da penitenciária feminina onde cumpriria a pena, e Harry/Eugenia aparece nela vestido de acordo com o seu género biológico.
autor desconhecido, Eugenia Falleni alias Harry Crawford,
Sydney, Austrália, 21 de Outubro de 1920,
colecções do Justice & Police Museum, Sydney, Austrália
A terceira, também uma imagem de cadastro da mesma penitenciária, feita oito anos depois, confirma-nos uma Eugenia Falleni em roupagens femininas.
autor desconhecido, Eugenia Falleni alias Harry Crawford, Sydney, Austrália, 1928
Colecções do Justice & Police Museum, Sydney, Austrália
Abstendo-me de falar mais da história desta personagem, duma vida plena de potencial romanesco que desafio os leitores a investigar, concentro-me no que está patente nas fotografias.
São três imagens sem grandes ambições. Fotografias de identificação. A inicial apresenta-nos Falleni na sua personificação masculina. As duas seguintes mostram-nos a sua verdadeira identidade, a que a biologia lhe impôs. A que a lei a forçou a aceitar.
Mas as imagens contam-nos uma história diferente. Olhando-se a linguagem corporal, a sensação que se tem é que a personagem travestida é a que consta das fotos da penitenciária, e não a da esquadra. Eugenia é muito mais natural e segura enquanto suspeito Harry Leo Crawford , do que enquanto condenada Eugenia Falleni.
autor desconhecido, Eugenia Falleni alias Harry Crawford,
Sydney, Austrália,início de 1920 (pormenor)
Colecções do Justice & Police Museum, Sydney, Austrália
autor desconhecido, Eugenia Falleni alias Harry Crawford,
Sydney, Austrália,início de 1920 (pormenor)
Colecções do Justice & Police Museum, Sydney, Austrália
autor desconhecido, Eugenia Falleni alias Harry Crawford, Sydney, Austrália, 1928
Colecções do Justice & Police Museum, Sydney, Austrália
Estas imagem falam-nos de Identificação e Identidade. E de como estes conceitos não são sempre avenidas cristalinas, funcionais e desimpedidas. São, por vezes, sítios obscuros, retorcidos, misteriosos.