As vezes fico cansado de não escrever daí escrevo. O que não é nada de mais especial do que o que você faz quando sente uma necessidade bastante pessoal.
Os escritores que sobrevivem ao tempo são a princípio receptáculos e na sequência transmissores de sinais invisíveis aos olhos mais desatentos. Eles ajudam na construção da nossa verdade pessoal e assim mexem no mundo, a questão é: como?
Quem sabe se uma visão verdadeira sobre solidariedade tivesse surgido alguma década antes, tivesse se difundido a ponto de respeitarmos e compreendermos o outro para além de fronteiras de países, os minutos de massacre na boate parisiense fossem minutos a mais de música no mundo e a criança não tivesse aparecido morta na praia europeia, mas esta ideia talvez não se difunda e as metralhadoras reinem de volta no meio de inocentes e a criança volte à praia, o homem frente ao tanque de guerra, o urubu espere o menino morrer pra se alimentar dele, as crianças surjam nuas novamente do mato no Vietnã...
Chega um momento em que qualquer sujeito se pergunta coisas fundamentais, mas parece que estas perguntas estão condicionadas a não serem nunca mais respondidas neste mundo vampiro.
De barriga cheia não há motivos para questionar a ordem, portanto quando se está de barriga cheia só há motivos para acreditar que o universo é justo, só há olhos para o conto de fadas, de pança cheia a massa só quer o entretenimento da novela das nove que todos já sabem o final por ser o mesmo enredo, repetido há trinta anos; sentado na sala de cinema comendo pipoca só há motivos para adorar o Tarantino que continua derramando na tela o mesmo sangue que suja as calçadas das periferias diariamente e me reafirma como alguém privilegiado, porque este sangue não me suja. Não há cinemas nas periferias.
Anuladas as forças e capacidades da gente escolher, gostamos de tudo o que não quer nos tirar do lugar de conforto, nos agrada não mais o belo, mas o prático, o pronto, nos agrada qualquer coisa que não exija mais nada da gente. Consideramos atraente tudo o que é harmônico por ser igual, simétrico, e não colocar em cheque as nossas crenças e opiniões, perdemos portanto nosso senso estético.
Apesar de a utilidade da arte ser mais indireta quando comparada com a ciência, ela existe. A arte é não apenas útil como necessária. Afinal, a prática mais humanizadora é a prática artística, e um bem-estar social concreto é necessário e se dá principalmente pelo homem no seu nível mais alto, não o nível da razão, mas o nível intuitivo, estético, poético.
Ela é responsável por um projeto que pressupõe a incapacidade de compreensão das pessoas mais comuns brasileiras de textos complexos, e está distribuindo uma versão de "O alienista" de Machado de Assis, reescrito de forma simplificada, de acordo com a linguagem e os padrões editoriais atuais.
Uma geração que ecoa a frase "deus está morto" não pode ser mais contraditória, uma vez que é frágil e religiosamente movida por modismos, cria uma falsa aparência de intelectualidade, é levada por ondas "cults" e "hipsters", mas não consegue mergulhar.
A existência é tão discutida por ser motivo de clausura e sua grande busca é a liberdade, e entre algumas formas de liberdade, dentro das tantas facetas da realidade, está a imersão na ficção. Porém no nosso país, literária e cinematograficamente pobre, essa ficção está mais presente nas telenovelas e nas fofocas.
Kollwitzstrasse 52 é um espetáculo que dialoga em inúmeras dimensões na construção das pontes que levam do estranhamento ao reconhecimento, construindo identidades sob o pressuposto de desmanchá-las.
Escrever talvez seja uma das poucas formas de o combater o inferno - representação dos medos e conflitos - que existe de maneira irreparável, dentro ou fora da gente, uma vez que escrever exige uma determinada organização dos pensamentos. A partir dessa concepção de inferno, vê-se que ele é um grande motivo de escrita, desde diários pessoais como forma de tratamento psiquiátrico, até o inferno de Dante.
Em tempos da supervalorização de tudo o que é visual, fazer poesia se torna cada vez mais, além de um ato necessário, um ato de coragem, visto que nossas liberdades estão regulamentadas como nunca. Embora o Brasil esteja publicando poetas que o tempo se encarregará de consolidar, surge também uma poesia sufocada, rasa, falha e nada transformadora, resultado da ditadura do consumo, da imagem e da comunicação.
A escolha da intelectualidade científica em detrimento da artística nos trouxe a um pandemônio atual, onde algumas noções básicas se confundem, como a noção de universalidade. A noção de heliocentrismo está confusa diante da noção de egocentrismo, e vivemos tempos onde o indivíduo narcisista e violento é o centro do universo, quando em verdade há uma máquina universal de sonhos e nossa individualidade é, na sua maior parte, coletiva. O papel do artista sempre foi, e nesse momento não deixa de ser, fundamental. O criador de cultura deve conceber o mundo além da ciência, de forma combativa.