As cidades de Calvino: invisíveis e maravilhosas
Filho de pais italianos, Italo Calvino nasceu em Cuba. Viajante desde o nascimento, Calvino cresceu na Itália. Sempre foi um estrangeiro: No colégio católico, era o terror das aulas de educação religiosa; Filho de cientistas, tornou-se escritor; Na Itália fascista, tornou-se comunista.
Pode-se dizer que o livro As cidades invisíveis [originalmente Le città invisibili] é da fase madura do autor. Publicado em 1972, já não é tão autobiográfico, embora carregue o eterno espírito peregrino do escritor.
Na narração resta claro que o importante não é a verdade do relato, não é a conformidade entre o relatado e o fático, mas é a poesia da história, o encanto das imagens e dos trajetos. E nisso Marco Polo prende o leitor: suas cidades invisíveis, mesmo que não existam, são maravilhosas.
"Não se sabe se Kublai Khan acredita em tudo o que diz Marco Polo quando este lhe descreve as cidades visitadas em suas missões diplomáticas, mas o imperador dos tártaros certamente continua a ouvir o jovem veneziano com maior curiosidade e atenção do que qualquer outro de seus enviados ou exploradores." Italo Calvino, em "As cidades invisíveis"E o viajante veneziano Marco Polo enviado do soberano Kublai Khan começa a relatar as cidades fantásticas d'além muros; vilas sobre as quais o rei governa, mas que mal conhece. Desse primeiro relato, destaco a cidade de Tamara, a cidade dos símbolos.
Escreve Calvino que "raramente se fixa o olhar em alguma coisa, e, quando isso acontece, ela é reconhecida pelo símbolo de alguma outra coisa". E quem poderá dizer que é mentira?! Freud escreve que todos os nossos processos interpretativos são conexões (por vezes defeituosas, é verdade) de imagens, inter-relações de conceitos. Calvino continua: "Os olhos não veem coisas, mas figuras de coisas que significam outras coisas."
O italiano ainda analisa a nossa vida de comprar significações na loja, afinal, há anos perfumarias não mais vendem perfumes, elas vendem carinho, amor, leveza; até a conta no banco é feita para o cliente se sentir especial, se sentir prime:
"Mesmo as mercadorias que os vendedores expõem em suas bancas valem não por si próprias, mas como símbolos de outras coisas: a tira bordada para testa significa elegância; a liteira dourada, poder; os volumes de Averróis, sabedoria; a pulseira para o tornozelo, voluptuosidade." Italo Calvino, em "As cidades invisíveis"Outro diálogo marca o leitor durante a obra:
"_ Você viaja para reviver seu passado? - era, a esta altura, a pergunta do Khan, que também podia ser formulada da seguinte forma - Você viaja para reencontrar seu futuro?E a resposta de Marco:
_ Os outros lugares são espelhos em negativo. O viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá."
Outra cidade nos chama a atenção na leitura - e eu não sei explicar por que ela ainda me atormenta: a cidade de Valdrada, a cidade espelhada.
Ao descrever Valdrada, o Marco Polo de Calvino logo dispara: "Os antigos construíram Valdrada à beira de um lago com casas repletas de varandas sobrepostas [...] Deste modo, o viajante ao chegar depara-se com duas cidades: uma perpendicular sobre o lago e a outra refletida de cabeça para baixo." Não se sabe qual das duas cidades é de verdade, quem é reflexo de quem.
Por algum motivo, essa descrição parece-me falar de autorreferência, autoestima no sentido imagético da palavra. Calvino ainda ironiza, quanto a esse apego ao externo: "o que importa não é tanto o acasalamento ou o degolamento, mas o acasalamento e o degolamento de suas imagens límpidas e frias no espelho."
O livro é uma pérola, inquebrantável como um diamante e fluido como fumaça. Onipresente, perseguidor, até stalker: as imagens que Calvino cria nos acordam de madrugada e nos colocam para dormir. Eu ainda estou perdido nalguma varanda de Valdrada, olhando para o lago, sem sabe se sou refletivo ou se sou reflexo. Ao ouvir os relatos fantásticos e fantasiosos do viajante veneziano, Kublai Khan anuncia e nos deixa uma pergunta, que pode reverberar por anos e escrever epígrafes em lápides:
"As suas cidades não existem. Talvez nunca tenham existido. Certamente não existirão nunca mais. Por que enganar-se com essas fábulas consolatórias?"