Quando a arte nos derruba
Para o poeta Ferreira Gullar, a arte existe porque a vida não basta.
Talvez para ele a arte fosse a motivação para realizar algo que oferecesse completude e preenchesse os espaços vazios espalhados no cotidiano. Sua visão poética lhe serve como verdade, por ele ser um homem da arte. Ela (em suas diversas formas – a poesia, o cinema, a música...) não serve apenas para os que a criam, mas sobretudo para os pobres mortais que também precisam preencher e substituir emoções.
Quando se está triste a arte serve como uma fuga da realidade e há quem busque as comédias ou os romances para que seja possível dar um alívio à alguma situação irritante da vida real. Para um simples mortal que sou, pelo pouco que senti da vida, percebo que ela (a vida) é mais do que bastante. Sinto muito em discordar do poeta.
A vida transborda dramas, tristezas, felicidades, cada coisa em seu momento e as vezes tudo de uma vez só. O salário está acabando, as contas estão apertadas, você recebeu uma promoção no trabalho: um misto de sentimentos. O seu time ganhou o campeonato, seu filho fez uma bela apresentação no teatro da escola, os políticos estão cada vez mais corruptos e caras-de-pau: um misto de sentimentos. Tem uma guerra acontecendo no oriente, há cidades e pessoas bonitas sendo destruídas em nome do ódio alheio, seus velhos amigos te decepcionam e você encontra amigos novos e melhores, o hit do momento dói aos ouvidos e mesmo assim faz sucesso, ao mesmo tempo em que seu cantor favorito lança um excelente disco novo: um misto de sentimentos.
A vida transborda e para mim ela é bastante suficiente. É tão intensa que necessita ser atenuada e então buscamos na arte um lugar para nos abrigar.
É nessa hora que buscamos a estranha alegria em ver as vinganças de Quentin Tarantino destruindo seus e nossos inimigos. Buscamos a graciosidade nas comédias e romances de Wood Allen e tentamos entender as relações contemporâneas. Viajamos no tempo, no espaço e na genialidade de Stanley Kubrick. Admiramos com estranheza a loucura melancólica nas histórias de Lars Von Trier e vemos no diretor algo que tememos ver em nós mesmos. Ficamos abismados com a originalidade dos roteiros de Spike Jonze e também queremos ser John Malkovich.
Cartaz do filme Quero ser John Malkovich
Mas o filme acaba e apesar de existirem outros a serem descobertos durante nossa vida, voltamos à realidade e percebemos que as coisas são diferentes.
Até que chega o fatídico dia em que encontramos o filme que nos toca, ou simplesmente ele nos encontra e nos derruba.
Poderia ter sido qualquer consagrado diretor o responsável pelo tal fato. Lembro agora de uma história contada no livro Verdade Tropical de Caetano Veloso, em que ele descreve seu tempo de menino e sua relação com o cinema europeu (principalmente o italiano) que despertou nele o interesse por este cinema, seus diretores, suas atrizes, suas histórias repletas de verossimilhança com a realidade, em detrimento do cinema norte-americano. No seu caso foram os filmes "La Strada" e "I Vitelloni" de Federico Fellini os responsáveis por lhe tocar. Filmes onde a alma do espectador em questão foi capaz de se espelhar, ver sua vida retratada e transformada em arte.
Giulietta Masina, atriz musa de Federico Fellini
Geralmente isso ocorre justamente nos filmes classificados como drama, não por acaso a semelhança com a vida real. Mas minha história de homem comum é diferente da de Caetano e não foi um filme consagrado que me pegou.
Acompanhar os grandes nomes do cinema e ao mesmo tempo se manter aberto aos novos, principalmente os nacionais, virou um hábito difícil de largar, da mesma forma que acompanhar seriados pop – hábito bastante contemporâneo.
O filme diferentão do dia que chamou minha atenção apenas pelo título e sinopse chama-se “A bruta flor do querer” (sim, é uma estrofe da canção “O quereres” de Caetano Veloso, uma coincidência, ou não).
Trata-se de um filme de baixo orçamento, com poucos atores e uma história comum. Nada de extraordinário. E é justamente aí que ele nos pega, por não sermos extraordinários nos identificamos com a história que não é apenas de um homem, mas de uma geração inteira, que é considerada como “perdida”.
É o retrato do adulto jovem que sai da faculdade e se depara com a confusão que é a vida real longe da proteção da família, da academia e da ilusão do sucesso prometido no trabalho e nos relacionamentos. São expostos os medos, as inseguranças, as dores do fracasso e nos mostra através do personagem principal, o quanto somos perdedores.
Cena do filme "A bruta flor do querer"
Para quem se encontra perdido na mesma situação, com a vida cheia de caos e vai ao cinema em busca de uma distração, recebe desse filme, um tiro que saiu pela culatra. Instaura-se então um momento bad.
Independente se um filme recebe crítica positiva ou negativa (em relação a este, vi positivas dos críticos profissionais, e negativas do público que prefere as bobagens norte-americanas ou "redeglobais") está em nossa percepção o estrago que ele nos provoca.
Esse é o momento que a arte nos encontra e mostra o quão dramática ela pode ser de maneira assustadoramente semelhante com a vida real.