KEROUAC - Mario Bortolotto na pele do velho Jack
Eram os últimos dias da vida de Jack Kerouac. Alucinado, bêbado, cuidando da mãe, em crise com seu catolicismo sempre meio atravessado, o desgosto algo dúbio e culpado na relação com os amigos, sobretudo Neal Cassady, mas também Burroughs, Ginsberg, Corso. O texto de Mauricio Arruda Mendonça, intensamente interpretado por Mario Bortolotto, é belíssimo e visceral, como Jack. E triste e melancólico, também como Jack, sobretudo nestes últimos momentos.
Kerouac nunca quis ser rotulado em relação a nada. Colocaram-lhe rótulos garganta abaixo. Em certo momento da peça ele – agora na pele de Bortolotto – diz algo como “ninguém entendeu que eu estava simplesmente falando sobre beatitude, beatitude”. A escrita de Jack era inseparável da sua vida, do seu estômago, das suas bebedeiras, dos seus amigos e principalmente da sua alma. Por isso seu pavor em ser tratado como “um dos grandes”, e sem receber o que os outros recebiam, apenas tendo o ônus de que lhe tirassem a escrita do patamar que ele a colocava. Inseparável da vida, dos caminhos do excesso. Como ele mesmo diz, citando Blake.
A vela que queima durante a peça toda é como Kerouac no fim, bruscamente apagado. A música é baixa, ao fundo, delicada e respeitosa. Julgado por muitos, esquecido, incompreendido. Impossível não sair do teatro com uma sensação esquisita, uma espécie de incompreensão, um vazio. Sim, no final Jack apoiou a Guerra no Vietnã, teve seus repentes reacionários. Nunca achei que devêssemos dar séria importância a isso. Nem Jack dava. Era um desajustado em outra esfera, ele era a tal da beatitude. E pagou um preço por isso. E respondeu altivamente como uma metralhadora giratória de genialidades confusas, encarnando ali mesmo – realmente numa espécie de palco, e não só do teatro – seus personagens, seus amigos, seus inimigos, seus demônios. Tudo ao mesmo tempo. Não havia como separar tudo isso. Jack era um só. O que vivia e o que escrevia.
Kerouac está em cartaz em São Paulo no Teatro Cit Ecum - Rua da Consolação, 1623. Tem direção e iluminação do saudoso Fauzi Arapi. Atuação e sonoplastia de Mario Bortolotto e operação técnica do Marcelo Montenegro. As fotos da peça, presentes no texto, são do Grima Grimaldi.