A música brasileira em 1977
Décadas, eras e safras. Nas constantes renovações e ciclos da música, algumas épocas ganham destaque pela qualidade excepcional dos lançamentos e pela genialidade dos artistas. 1973 foi o ano dos melhores discos de rock do mundo e 1977 parece ter sido frutífero na seara nacional. Trago aqui três discos que exemplificam a minha idéia:
1) Orós - Fagner
Esqueça aquele cantor fanhoso e um pouco esquisito das 'Borbulhas de Amor': em 1977, Raimundo Fagner lançou um dos melhores discos de que se tem notícia na música nacional. Para termos uma idéia do calibre desse trabalho, basta dizer que Orós foi arranjado por ninguém menos que Hermeto Pascoal e contou com participações especiais de Robertinho do Recife e Dominguinhos! Outro destaque do disco é a qualidade das composições. Em tempos de urros, onomatopéias e canções monossilábicas, recebemos o alento poético de um Fagner que, inspirado e lembrando a lírica lusa, canta:
"Jogue os meus olhos no azul do céu Jogue os meus dedos no clarão do mar Jogue os meus cabelos na flor deste mar E eu serei só música, espalharei nas cinzas
E ficarei mais leve pra cantar Serei feliz com a morte Que venha feito mansa Como vem mansa a última onda do mar"
2) Belchior - Coração Selvagem
Belchior talvez seja um dos maiores, e mais injustiçados, compositores brasileiros. Injustiçado porque seu nome, e o de muitos outros compositores talentosos, foi ofuscado pela geração tropicalista. Se Caetano Veloso, Gil e Tom Zé tem lá os seus insights, Belchior é dono de obra consistente e de letras marcados pelo realismo sem moderação. Muito antes de David Lynch, o compositor cearense já sabia que:
'O meu som, e a minha fúria e essa pressa de viver E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza E arriscar tudo de novo com paixão Andar caminho errado pela simples alegria de ser Meu bem, vem viver comigo, vem correr perigo , vem morrer comigo'
Um disco para ser ouvido, sempre e novamente, sem restrições.
3) Alceu Valença - Espelho Cristalino
Outro autor consagrado nos 'videokês' e rodinhas de violão com os clássicos 'Morena Tropicana' e 'Anunciação', Alceu Valença era- em 1977- um sujeito musicalmente refinado. O álbum 'Espelho Cristalino' é marcado pela fusão dos ritmos e tônicas da poesia popular com arranjos de sonoridade moderna. 'Agalopado', por exemplo, é uma canção escrita com a métrica do 'martelo', modelo consagrado na poesia popular e na literatura de cordel. A faixa título, por sua vez, é um psicodélico 'crescendo' instrumental arrematado pelo refrão:
'mas eu tenho meu espelho cristalino que uma baiana me mandou de maceió ele tem uma luz que alumia ao meio-dia clareia a luz do sol'