Cenas de amor que não passam no cinema
E chovia, chovia sem parar. Com uma habilidade ninja para escapar dos guarda-chuvas que cruzavam o caminho, seguia para algum lugar, absorta como quem vive uma rotina. Bastaram alguns acordes para repentinamente despertá-la daquela fuga toda. Tudo que era normal ficou mais intenso, como num filme de baixo orçamento e muito sentimento. Se fosse uma película, as cores seriam amenas, quase cinza. Talvez os vermelhos – de sua boca, de seu sapato, do cabelo da menina que esbarrou em seu ombro e nem se desculpou – estariam destacados.
Ela sentaria no banco molhado da praça e a frase da canção ficaria mais forte: ‘O abajur perdido em sua luz, essa água quieta desejando a sede’. Abriria a boca, a câmera captaria as rachaduras de um lábio que tem sede, sede demais. No meio da multidão, dançaria, o ritmo ficaria ainda mais forte. ‘A paixão invicta que não vai passar’, berraria ela e o músico, o chorinho do ritmo em sintonia com o choro que cai do céu e molha a rua.
Enquanto estaria rodopiando no meio daquela gente toda, sem ser percebida porque a multidão não dá nada a ninguém, a câmera focaria em suas mãos. As gotas que refletiam o mundo, que molhavam suas unhas com esmalte pela metade – porque ela é humana, é real, porque ela esquece de passar acetona e se corta sem querer no chuveiro enquanto depila apressadamente as pernas.
E no meio dessa dança em solidão, você chegaria. Nessa hora, o foco seria na poça que estaria sobre nossos pés. Água suja, água que não se bebe, água com cheiro da rua e impurezas de vários passos que ali pisaram, água indesejada como um amor proibido. Como o amor dos dois.
Dançariam, suas mãos tocariam o corpo dela, a imagem seria do arrepio da pele, da intensidade do encontro, até que se virariam. E, nessa hora, a música cessaria. O som seria apenas da respiração entrecortada e ofegante. Viria o beijo, ah, mas o beijo não seria mostrado como quase sempre se faz na sétima arte: Não seria visto de fora, mas de dentro.
A tua unha mal cortada abrindo suavemente o lábio dela. Boca. Olhos. Nariz. Boca. O dente torto. O espaço minúsculo e ao mesmo tempo imenso que se cria quando as bocas se separam. Quanta coisa passa na cabeça nesse instante? O beijo inesperado, fugaz, que começa tenro e termina com as mãos apertando os cabelos com a força de quem deseja, de quem quer fundir corpo, saliva, alma, fluídos, intensidade e calma.
E então a câmera se afastaria, lentamente. Ninguém repararia. Seriam mais um. Terminaria com a imagem da cidade anoitecendo e sendo preenchida por luzes acesas em janelas misteriosas. Tanta coisa que se acontecem dentro das casas, dos quartos, entre cortinas e paredes, mas ninguém vê. Plim. Tss. Gota que cai e cigarro que se apaga. A música do celular já estava no fim.
O artista lamenta: ‘Essa cama imensa que não vai passar’. Então ela passa de música, lembra que precisa ir pra casa e lá a cama continua imensa. Ninguém veria sua cena de amor. Você não veria. Você não viria. A chuva continuava caindo. Ela levantou e se foi: Não era cinema, era só mais uma quarta-feira de inverno.
Artigo escrito por mim, publicado orginalmente aqui.