Histórias de uma pietá contemporânea
O olhar indignado parece não acreditar no que vê. As lágrimas existem, mas não chegam a descer. O sensacionalismo do corpo exposto, à mercê da curiosidade humana, é vencido pela dramaticidade de um encontro já explorado pelo renascentista italiano Michelangelo, no século XV. A mãe está na cena do crime, avisa por telefone um repórter do jornal Extra. Com Monteiro, o motorista, Marcelo Carnaval chega à Rua Visconde de Inhaúma. Na via pública, Norma Tramm Drumond envolvia com as mãos o rosto do próprio filho, Leonardo, um engenheiro assassinado pelas costas no Centro do Rio de Janeiro.
De lá pra cá, já se foram oito anos, um Esso de Jornalismo e o prêmio Rei da Espanha. Quem sabe Carnaval não estava apenas na hora e lugar certos, função imposta ao jornalista, aquele que se propõe a ser “testemunha ocular da história”. Quem sabe a atualidade prevaleceu, junto à tendência pela fotografia que valoriza o conflito, a dor. “A tristeza é um mote muito forte. Tudo isso mexe contigo”, aposta o fotojornalista Marcelo Carnaval.
Nos bastidores, a iluminação não era favorável. A inviabilidade do flash indica o desconforto. São os faróis do carro da redação, ante Monteiro ao volante, que dão o tom amarelado e uniforme, ajudam a revelar a tristeza de que fala o fotógrafo. De fato, a luz que conduz a narrativa compensa um enquadramento feito de excessos nas bordas, destaca a professora de fotojornalismo da Uerj e Estácio Soraya Venegas. “A foto do Marcelo Carnaval não é exatamente um flagrante diferenciado, é uma luz diferenciada. A luz dá um quê de especial”, analisa.
O vermelho-sangue que se desataca é reforçado por giroscópios da polícia, aos montes no local. Numa das viaturas, Carnaval encontrou o apoio para sua câmera e fez o clique. Não estava suficientemente perto, a uns seis metros da cena, porque não queria “invadir”, embora soubesse como ninguém que um homem apontando uma câmera não é invisível, ainda que seja mais discreto que as equipes de TV.
Aliás, para Carnaval, ajudou não ter emissoras de TV no local: “não são pessoas discretas”. Ainda assim, um policial chegou a pedir para não fazer as fotos. Como quase todo jornalista, provavelmente, continuaria fotografando, se não pedissem para parar, confessa. Mas já tinha o suficiente. Carnaval mostrou sua foto a Carlos Mesquita, fotógrafo do Dia, falecido em 2012. Ele também fez a foto, mas do outro lado. O efeito não foi o mesmo. O mérito dos demais repórteres e fotógrafos ali presentes foi o respeito à Norma. “Agradeci nominalmente na cerimônia do prêmio”, lembra.
Formado pela UFF, Marcelo Carnaval começou a carreira de fotojornalista no Jornal do Brasil, em 1985. Passou também pela redação carioca da Veja e, desde 1999, integra a equipe de fotografia do jornal O Globo. Foto: Fernando Maia
Cobrir um enterro é pior que cobrir um tiroteio, nunca me sinto à vontade, mas fotografo sempre – diz sem demonstrar receio. Saber quando deve ou não abaixar a máquina é sempre um dos dilemas éticos de qualquer fotojornalista que lida diariamente com as dores humanas. Para Carnaval, nenhuma foto vale a vida. “Se eu puder ajudar, vou ajudar. Usaria até a câmera se for preciso”, reflete ao ser lembrado pelo repórter da história de Kevin Carter. O fotojornalista sul-africano se suicidou em 1994, um ano depois de registrar uma criança desnutrida observada por um abutre, no Sudão.
A noite não foi agradável. Em seguida, Carnaval cobriu o assassinato de uma mulher em Botafogo. Foi partida ao meio. Fotografou uma perna saindo do saco plástico de lixo, crueldade não publicável. As fotos que expõem explicitamente a violência dificilmente saem em O Globo, ainda mais na capa, explica o fotojornalista. “Mas acho que esta foto tem algo que não é comum. É uma mãe de classe A, de uma família dona de uma construtora. Se fosse uma mãe pobre, seria banal. A gente vê isso todo dia”.
O contato do fotógrafo com a personagem limitou-se àquele dia trágico. Na época, Carnaval soube que Norma queria processar o jornal. A irmã de uma repórter era a advogada da família. No fim, o processo contra O Globo não se oficializou. Um ano depois, Vinícius Dônola, da TV Globo, conversou com a mãe do engenheiro. Apesar de não ter aprovado inicialmente a exposição, ficou mais agradecida. “Teve mais amparo por causa da foto”, conta Carnaval, sem esconder a surpresa com a reviravolta.
“Somos mais bem recebidos pelos pobres que pelos ricos. É que pros pobres sair no jornal pode ser uma oportunidade de denunciar, de haver justiça”. É a constatação de quem tem o apoio silencioso dos colegas de fotografia do Globo. Mas a justiça não chegou, neste caso, nem para os ricos. O mandante do crime nunca foi preso. O vigilante Omar Alves de Paiva, acusado de disparar os dois tiros em Leonardo, foi absolvido no julgamento ocorrido em 2009, por seis votos a um. Exatamente 45 dias depois, Paiva voltou à prisão, após matar um jovem na Zona Oeste do Rio.
Entre as cinco outras fotos não publicadas, havia sua preferida: a mãe acariciava o filho. Foi o subeditor José Roberto Serra quem decidiu qual deveria sair na edição do dia seguinte. “Pela expressão de vazio da mãe”, pondera Carnaval, saiu na capa a imagem premiada. A importância de alguém escolher pelo repórter é justificada e destoa da busca por autonomia, comum no ramo. Apesar do mito construído pelo jornalismo e de ser um sonho para quem está no começo de carreira, estar na capa não deslumbra o já experiente fotógrafo. As melhores fotos não necessariamente estão expostas na vitrine do jornal.