A educação em ‘Pink Floyd The Wall’
Cena de 'Pink Floyd The Wall' que mostra o protagonista criança e adulto; ele recorda sua infância traumática (Foto: Reprodução)
No livro “Pedagogia da Autonomia”, Paulo Freire diz que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção”. Ele defende uma prática progressista e crítica na educação, por oposição ao que chama de “ensino bancário”. Por este, entende-se o tradicionalismo escolar pelo qual o aprendiz é adestrado para repetir a repetição ditada pelo professor.
Segundo Freire, a educação deve estimular a inquietação, a criatividade e a persistência, para além de uma cultura meramente enciclopédica, apartada do contexto histórico-social do estudante, que, no caso, decora conteúdos para depois esquecê-los. Nesse sentido também caminha o pensamento de Rubem Alves. É o que se vê em trecho do documentário sobre sua vida, “Rubem Alves, o Professor de Espantos” (2013), dirigido por Dulce Queiroz.
'Nas nossas escolas não há desenvolvimento da sensibilidade', afirmava o escritor Rubem Alves, referindo-se a cobranças escolares sobre a fruição da obra de arte (Foto: Divulgação)
No filme, Alves diz que um dos objetivos da escola é excitar a inteligência e a sensibilidade, de modo a provocar o espanto sobre o funcionamento e a explicação dos fenômenos. Ao falar que o objetivo da escola não é dar respostas, ele aponta para o estímulo ao surgimento de perguntas e dúvidas. Considera, ainda, que o ensino deve estar associado aos problemas vivenciados pelo aluno no dia a dia.
Na contramão dessa prática educativo-crítica está o ensino bancário, que é burocrático e opressor. O filme musical “Pink Floyd The Wall” (1982), dirigido por Alan Parker, aborda essa pedagogia da opressão, quando o protagonista Pink (Bob Geldof), um astro do rock, relembra momentos dolorosos de sua infância nos anos 1950. Numa das cenas escolares, o professor (Alex McAvoy) surpreende, em sala de aula, o menino Pink (Kevin McKeon) com um caderno de poemas. E passa a ridicularizá-lo na frente de todos os outros, que riem quando o professor toma o caderno e lê um poema, trecho da canção pinkfloydiana “Money”.
Professor de 'Pink Floyd The Wall' na sequência em que censura o jovem Pink (canto à esq.) por flagrá-lo com um caderno de poemas (Foto: Reprodução)
Após a humilhação, o aluno Pink é repreendido para esquecer os poemas e voltar ao trabalho. “Repitam depois de mim”, ordena o professor, ditando as medidas de uma área de terra. Percebe-se que, ao desprezar os poemas e repetir uma lição técnica, o professor reforça que é isso que realmente interessa e é útil: seu pragmatismo elimina o sujeito. Neste momento, Pink tem um devaneio pelo qual se veem crianças marchando em fila, entrando numa engrenagem e saindo sentadas em carteiras, com uma máscara neutra cobrindo-lhes o rosto.
Essa engrenagem é representação da escola tradicional, que elimina a identidade dos alunos, seu direito à curiosidade, à indignação e ao pensamento livre. Como numa produção industrial em série, eles são matéria-prima: atravessam uma máquina e se padronizam, destituídos de autonomia. Também são animalizados na sequência em que seguem em fila até cair num gigantesco moedor de carne. Enquanto isso, está em execução a famosa música “Another Brick in The Wall (Part II)”.
Cena sugere que, transformados pela engrenagem escolar, alunos perdem sua individualidade e viram 'massa de manobra' (Foto: Reprodução)
Outro tijolo no muro, o aluno não passa disso. A escola é uma fábrica de onde saem crianças automatizadas e não pensantes, produzidas em larga escala e prontas para a manipulação do Estado. Há nisso um conceito de modernidade associada à era da tecnologia e da quantificação, um conceito de “tempos modernos” no sentido que Charles Chaplin propôs, com o humano se robotizando na medida em que se integra à própria máquina e passa a ser ele mesmo uma peça da engrenagem.
Em “Pink Floyd The Wall” há, portanto, uma rígida crítica ao ensino bancário. As lembranças escolares de Pink, com outras passagens de sua vida, vêm assombrá-lo e fazê-lo erigir o muro do isolamento que o cerca. No fim, após seu autojulgamento, o juiz o sentencia à pena máxima: expor-se perante os outros, e manda derrubar o muro, que explode. Transmite-se a ideia de superação, enfrentamento dos medos e suas barreiras, simbolizados pelo muro. Trata-se de um cair-se em si mesmo para se ver na realidade: o mesmo que se conscientizar sobre o mundo, dominando-o para não ser dominado, o que está de acordo com uma prática educativo-crítica.
Alunos enfileirados marcham até cair num grande moedor, que os transforma numa massa uniforme de carne moída, em trecho de 'Pink Floyd The Wall' (Foto: Reprodução)