O perfil do canalha
Escultura de Giusto Le Court, de 1670, é alegoria da inveja, atributo do canalha (Foto: Reprodução/Wikimedia Commons)
Você despreza exemplos e avisos de outras pessoas, segue envelhecendo tranquilo e ileso... Até que, quando se dá conta, já era! Pode ser irreversível. Quem já se deparou com uma canalhice sabe do que se trata. Ao descobri-la, sente que a fratura está exposta. Por isso, aqui estão algumas considerações sobre o canalha, esse famigerado artífice da maldade, da injustiça e da frustração.
Sabe-se que o canalha é capaz de todo tipo de patifaria, mau-caratismo e filhadaputice. Contudo, há quem ache que isso nunca vai ocorrer consigo. Aí é que reside o engano, pois o canalha não vê cara nem coração. Assim, qualquer um pode se tornar a vítima. O que surpreende é que, geralmente, o calhorda (ele possui outros sinônimos pejorativos) é um conhecido ou está bem próximo e, com certeza, não aparenta ser o que realmente é.
Nelson Rodrigues era especialista em canalhas e ensina sobre eles em sua literatura (Foto: Reprodução)
Buscando ilustração na literatura, chega-se a Nelson Rodrigues. Na crônica “O Juiz Ladrão”, compilada no livro “À Sombra das Chuteiras Imortais”, ele diz que “o canalha é sempre um cordial, um ameno, um amorável”. Em outro livro, “O Reacionário”, antologia na qual confidencia suas memórias, o Anjo Pornográfico complementa: “o pulha costuma ter uma fluorescente aura de simpatia”.
Ou seja, a falsidade é palavra-chave no perfil do canalha. Ele vai lhe dar tapinhas nos ombros e fingir ser seu amigo para depois apunhalá-lo à traição, o que lembra o soneto “Versos Íntimos”, de Augusto dos Anjos, em que avisa: “A mão que afaga é a mesma que apedreja.” Deduz-se, portanto, que esse biltre é, também, um covarde, já que ataca pelas costas. Além disso, o canalha quase nunca assina sua obra. Ele manipula situações para permanecer legalmente oculto e protegido. Mas se sabe claramente que foi ele o autor do malefício.
A mão que afaga também apedreja, diz o poeta Augusto dos Anjos, versando sobre ingratidão e perfídia (Foto: Hobvias Sudonelghm/Flickr)
No âmbito da falsidade, o canalha é, ainda, um impostor ideológico. Significa que a teoria que ostenta não condiz com sua prática. Se apregoa liberdade, altruísmo e humildade, é, no fundo, cerceador, egoísta e arrogante. Mais uma vez, ensina Rodrigues, na peça “Toda Nudez Será Castigada”, pela voz do padre Nicolau: “Acredite: só o canalha precisa de uma ideologia que o justifique e absolva.”
Até aqui você poderia perguntar: “Mas qual o objetivo ou motivo do canalha?” Nem sempre os há de fato. Ele quer simplesmente prejudicar alguém e se satisfaz com isso. O que você fez ou faz não teria repercussão nenhuma na vida do canalha. Por que ele se esforça para lhe causar dano, se o seu sucesso em nada o afeta? Poderia se supor que o canalha age em benefício próprio ou de outrem, por sua vez, também canalha. No entanto, na maioria dos casos, não é assim, o que leva ao entendimento de que ele é motivado por inveja, sadismo e necessidade de autoafirmação.
O canalha está à espreita, sondando para pegar você desprevenido (Foto: Gabriel Delgado/Wikimedia Commons)
Certamente esse terrorista de satanás tem baixa autoestima e precisa de suas canalhices para se achar "o" melhor. É por aí que ele pode se tornar um perseguidor implacável até ver que você está derrotado. E ele tem que vê-lo cabisbaixo. Caso você não se importe de ter sido vitimado e perambule por aí se dissolvendo em sorrisos, o canalha irá novamente ao seu encalço, engendrando novo sortilégio de patifarias (nunca subestime o repertório de diabruras de um canalha). Por isso, mesmo não se importando, finja que foi atingido e está abalado.
A música “Canalha”, de Walter Franco, em bom e explosivo rock’n’roll, fala de “uma dor canalha/ Que te dilacera”. Você pode senti-la devido à canalhice sofrida ou pode tê-la dentro de si para expandi-la a seus semelhantes. Isto é, você pode ser agente da canalhice ao praticá-la em outras pessoas, sendo, em si, também um canalha. Desse modo, é preciso se vigiar para não fazer com os outros o que não deseja que façam consigo. Franco ainda alerta sobre a “dor canalha” e o próprio: “Não tarda nem falha/ Apenas te espera”. Então, um dia ele virá com a dor. E sem mandar aviso.
Artista marginal à MPB, Walter Franco empresta seu grito para alertar sobre 'dor canalha' (Foto: Divulgação)