Sorria! Você está sendo curado
Para ser um doutor da alegria, em primeiro lugar, o palhaço tem que “abafar o próprio ego para não colocar suas habilidades e virtuosismos acima da relação com a criança”. A criança é o personagem principal. Trabalha-se com aquilo que ela tem a oferecer no momento. A proposta é interagir com a criança através do improviso, numa relação que não é premeditada, que acontece pela experiência e que não pode ser concebida previamente.
Enquanto o adulto, com sua mania de racionalizar tudo que existe, se propõe a prever e anteceder e a se prender às coisas, a criança e o palhaço, pela sua incondicionalidade na relação com o mundo e com o “outro”, vivem cada momento de acordo com o fluxo natural da vida. A vida é fonte de alegrias, mas as alegrias trazem consigo sofrimento, inquietações e tristeza devido o caráter impermanente e dualista da própria vida e de todas as coisas. Vida e morte são duas faces da mesma moeda. Todas as coisas estão ligadas a todas as coisas (filosofia Budista).
“A criança é um ser livre de preconceitos. Não é prisioneira nem da lógica nem da razão. Para a criança não existe o ridículo. Só vive no presente. Não faz planos. O adulto para se relacionar com o outro precisa de um rótulo, de um preconceito. Tem de fazer um juízo.”
O trabalho dos Doutores da Alegria com as crianças requer cuidado, delicadeza e dedicação. Para cada criança visitada há uma preocupação especial. A relação com ela se estabelece antes mesmo de adentrarem o quarto. O respeito é primordial. No decorrer do tratamento tudo é obrigatório, mas o palhaço é optativo. Se as crianças se recusam a recebê-los, eles respeitosamente atendem ao pedido. Há todo um cuidadoso trabalho no estabelecimento de contato. A criança tem liberdade na relação com o palhaço. É a partir dela que a interação se desenvolve.
A conversa inicial possibilita entender qual recurso disponível permite ter acesso à essência da criança para desenvolver a rotina de interação com ela. Trabalha-se com o momento, com o improviso. O acaso é um fator importante. Para tanto o palhaço tem que estar vazio, aberto para receber os estímulos e responder a eles de modo criativo. Esses estímulos podem ser de várias espécies. O corpo, por exemplo, é visto como um meio de manifestações diversas causadas pelos estímulos. Esses estímulos são consequência da interação e do uso de técnicas e habilidades artísticas no desenvolvimento da rotina com a criança. A saída tem que passar a mensagem de esperança, deixar claro que eles irão voltar.
Para os Doutores da Alegria, o amor é mais importante que a razão. As relações afetivas, a amizade, o amor, o respeito e a admiração devem ser conquistados. A relação com a criança é pautada pela liberdade e pelo respeito. Há uma predisposição para conquistar o respeito e o carinho das crianças. O trabalho dos Doutores da Alegria, inclusive com crianças inconscientes, permite a medicina tradicional pensar numa outra lógica que não a dela. Para ela a criança em estado de inconsciência não responde a estímulos independentemente de sua origem. O palhaço investe na relação com a criança como se cada momento fosse importante e com isso imortaliza a relação com a criança através da lembrança.
Alguns exemplos de cenas emocionantes marcam este comovente filme. Um dos palhaços conta que ao visitar uma criança com leucemia, em estado terminal, e que tinha perdido por conta disso a visão, trabalhava com outros estímulos que não os visuais dada a incapacidade da criança de enxergar. Cantavam e tocavam para ela e ela, generosamente, balançava o pezinho acompanhando o ritmo da música. Outro palhaço conta que dois anos após a primeira visita, voltou a um hospital e encontrou uma das crianças, que visitava rotineiramente, internada na UTI, em coma. Após ter sido autorizado pela família e pela equipe médica a entrar no quarto, se apresentou e a criança reagiu com um sorriso. Em seguida, cantou as canções que costumava cantar dois anos antes e ao terminar perguntou a criança se ela havia gostado e ela inacreditavelmente mexeu as mãos e fez um sinal positivo.
“A medicina tradicional parte de uma visão externa do ser humano enquanto os Doutores da Alegria enxergam o ser humano por dentro. A medicina tradicional jamais será completa se não o enxergar por dentro e por fora. É preciso ter uma visão integral do ser humano.” O palhaço, ao contrário dos médicos, não trabalha com respostas. Se contenta em brincar com as perguntas, não vê a criança como um paciente que está doente e sente dores. Não enxerga o que está ruim, busca o que está bom e procura trabalhar com a capacidade de fantasiar que é própria da criança. A imaginação da criança permite ao palhaço brincar com a natureza das coisas, criar um mundo que não deixa de ser real, pois existe para ela, ela consegue vê-lo e experimentá-lo de maneira a confundir fantasia e realidade. “Somos aquilo que pensamos” (Buda), somos aquilo que queremos ser e é essa capacidade de pensar e fantasiar sem compromisso nem receios que permite a criança criar e manter um mundo próprio e imaginário. Mas isso não significa que ele não seja real. Afinal de contas quem pode definir o limite entre o real e o imaginário da mente de uma criança?
“Ser palhaço é um resgate continuo da inocência. Para o palhaço o que é o coma? Imperativo do verbo comer? A lógica do palhaço é outra. Ele olha a criança do jeito que ela está no estado em que ela se encontra. Não o ignora, mas aceita. Quem pode dizer que não há uma comunicação? Para o palhaço o que é ouvir? O que é entender? Entender o quê? Essas questões não passam pela cabeça do palhaço. Para um ser que provoca o riso, que não se importar em passar por ridículo o que é a morte e a vida?” Wellington Nogueira, fundador dos Doutores da Alegria.