Bethânia, a senhora da voz
“Daí, quando se passa ao registro poético é marcante a existência de canções universais de amor. Através de todas as épocas da história, a canção de amor assume (socialmente, coletivamente) em poesia o discurso erótico explícito. Sob uma forma que, na diversidade de suas retóricas, parece coagulada, mas que é constantemente reinventada fora do tempo e fora do espaço, a canção de amor escande indefinidamente as fórmulas seguras que as pessoas necessitam para dar palavras ao desejo. Desejo no fundo indizível, mas que sem cessar volta a se inclinar em direção a este ouvinte virtual, tirado do nada pelo cantor, seu Outro”. Paul Zumthor
Ela é profunda e como não haveria de ser? Escolheu a dramaticidade à estética musical desde cedo. E foi a seu passo, com suas opiniões fortes que se estenderam à sua voz que acalma quando canta “Tocando em Frente” e soa como um trovão quando interpreta “Carta de Amor”.
Sentia falta de dramaticidade na Bossa Nova e adorava os fados de Amália Rodrigues e os sambas-canção de Noel Rosa, deu nisso.
Em uma período da adolescência usava apenas cetim lilás e tinha como principal companheiro e responsável o irmão mais velho Caetano Veloso, tornou-se conhecida antes mesmo dele, quando substituiu Nara Leão no teatro, na peça Opinião.
Nunca fez questão de ser moderna, mas sim de seguir seus instintos. Independente e geniosa desde criança, mostrava seu poder de criar um belo drama desde cedo.
Como disse Caetano em “Verdade Tropical”, Bethânia já dramatizava quando adolescente, talvez por ser a preferida de sua mãe, dona Canô. Sua instabilidade emocional já gerava e intensificava ‘conteúdos apaixonados e pouco sensatos como o ciúme, a raiva, a exigência de exclusividade'. E a Caetano restava apenas-- em relação à irmã -- a tarefa de explicar cada gesto a seus pais. E foi assim que surgiu também a parceria dos dois irmãos na vida e na profissão. Bethânia seguia e Caetano cuidava, zelava, explicava e a analisava.
Bethânia sempre teve uma presença cênica marcante, não só na expressão corporal, que consegue trazer a palavra para o corpo. Mas também expressão da palavra emitida.
É como se cada sílaba fosse pronunciada com toda a intensidade que sua alma pede. Paixão e força se unem a cuidado e beleza. Bethânia tem um brilho e domínio do palco que só ela sabe ter.
De pés descalços e hoje não mais de lilás faz toda apresentação parecer uma extensão de sua alma, de seu estilo.
É gratificante e encantador presenciar tanta expressão: é uma mão que assinala, um braço que se ergue e a música se multiplica em uma extensão perfeita de som e corpo.
Foi para a Salvador a contragosto e fez seu próprio estilo, sem se envolver em manifestações políticas, Bethânia tinha sua toada, ela parecia seguir o tempo topo o timbre de sua voz que traçava a cada dia uma carreira concreta e sensível, sólida o suficiente para durar até hoje com vigor.
O negócio dela era mesmo cantar e o fazia com primor, com autenticidade. Bethânia mostrou que qualquer música pode ser bem lapidada por um bom intérprete. Pegou o sucesso brega “É o amor” e em sua interpretação virou poema. Cada sílaba entoada por ela é uma estrofe.
O que houve com Bethânia na época do Tropicalismo foi a defesa absoluta da sua individualidade, apesar de sempre participar de assuntos do núcleo baiano, assim chamado na época; Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa. No entanto, se mantinha à parte das decisões que tomavam diante de posições políticas e enfrentamentos diante do governo.
O que a diferenciou nessa época dos outros três foi a exposição precoce de suas potencialidades. Isso a colocava na frente enquanto Gil, Gal e Caetano ainda procuravam seus caminhos musicais. E como o destino de Bethânia se diferenciou, ela seguiu ao seu rítmo e não quis tomar parte de nenhum movimento, apesar de sempre participar cantando.
Continua à frente e fazendo coisas belas, que certamente vêm da alma, porque assim sente, porque assim se é Bethânia, a senhora da voz.