Córregos brancos de dor
Você ficou, ferida, você ficou. Uns 6 cm de corte de largura variável, terminando num fio que já foi de sangue, e que causou-me um certo desconforto pela ardência suave, suave, que não me fazia querer coçar-te.
Não me recordo se sangraste. Nem me lembro direito se a carne ficou levemente à mostra. Sei apenas que ela olhou o que fez, logo em seguida, e fez cara de rubor e tênue vergonha. Não me comovi. Entendi o ato e engoli em seco. Quem mandou. Eu cheguei até a sorrir enquanto se acalmava. Havia ido longe demais. Sugestão idiota.
Mas você acompanhou os meus passos a seguir, ferida, e manteve sua presença marcante a todo momento. Tão longo deixaste de arder, passaste a cicatrizar pelos trechos mais finos, e o processo como sempre foi adquirindo forma e criando uma crosta que já deixou de ser quebradiça e que assume cor de amor, quase roxa.
Posso agora pegar a pele e até forçar um pouco que você não quebra, ferida. Posso te olhar seguidamente e perceber que não consigo apostar se algo de você ainda irá ficar. Você me dói agora mais fundo – como aliás, sempre aconteceu – no momento em que o olhar dela se perdeu e vislumbrou uma raiva impossível de conter.
Ela não sabe, mas tua razão de ser virará também artigo, ferida, e doloroso apesar de tudo pois continuo convicto de minha razão, parcial mas verdadeira. Aquilo que é, em nossa convicção funda, é uma coisa; aquilo que fazemos, apesar das convicções expressas, pode ser algo muito diferente.
Desafio é juntar os fios. Desatar os nós. Algo que tenho feito quase guiado por uma religião em que deixei de acreditar cegamente – cegamente, não mais, realmente. A única religião que – parece – efetivamente existe. Mas tergiverso.
E o tempo passa e você sara, ferida. Os pequenos sinais de que você está indo embora –uma suave vontade de te coçar e te romper –, são os mesmos de que algo em você irá ficar. Não algo físico, mas uma sensação contida na lembrança. Na recordação dos olhares vagos e vazos soltos enquanto os braços caíam em cima de mim.
Para o futuro, quem sabe, ferida, você deixe uma pequena marca, quase imperceptível, na epiderme de meu corpo calejado e repleto de caminhos. Como rios brancos de dor cuja fonte é imperscrutável porque não se origina nem de mim nem do outro. De ambos. Uma comunicação tracejada que um dia estabiliza e leva-nos contentes em direção da morte.
Ainda bem.