Comentário a «Todos os Nomes» da autoria de José Saramago de uma perspectiva arquivística
A obra considerada retrata, em termos muito gerais, a tensão omnipresente entre a tradição e a mudança no mundo arquivístico.
Tal tensão é encarnada pela figura do Conservador que, perante alterações inexoráveis na concepção do acesso aos documentos do Arquivo da Conservatória Geral do Registo Civil, se obriga a transformar os procedimentos até então existentes.
As forças da tradição consubstanciam-se de vários modos. Em primeiro lugar, existe uma noção de correspondência muito estreita entre a continuidade (entendida enquanto respeito quase subserviente pela tradição) e o auto-reconhecimento orgânico. É como se a instituição, ao mostrar-se receptiva à mudança, perdesse, gradualmente, a sua identidade enquanto instituição ao serviço de si própria (e só muito depois ao serviço do público que a frequenta).
Em segundo lugar, essa noção identitária provê procedimentos rígidos, fundados na prática, passados com minúcia de geração em geração (de funcionários, entenda-se…). Mas, se a passagem de testemunho parece ser escrupulosa, a sua aplicação já parece dissolver-se nas brumas provocadas pelo desmazelo do cansaço e da repetição infinda dos mesmos gestos ao longo de muitos anos.
Os funcionários do Arquivo possuem uma «mentalidade uniforme» que deriva de uma prática raramente posta em causa, fundada numa prática secular e numa cultura de submissão à hierarquia. A cultura institucional tende, por conseguinte, à revalidação (e não à revisão) dos seus próprios princípios basilares. Nesta perspectiva, mudar é admitir o erro por parte de quem faz (sem considerar alternativas como a simples necessidade de evoluir ou de uniformizar alguns procedimentos para abrir espaço ao diálogo entre instituições diferentes) e, por isso, a mudança é evitada a todo o custo.
Em terceiro lugar, o acesso aos documentos é assaz difícil por parte de quem não pertence à instituição e também por parte de quem, pertencendo à instituição, queira recuperar documentos anteriores a um determinado momento. Saramago utiliza uma metáfora muito interessante para descrever o vínculo intelectual que permite a recuperação dos documentos: o fio de Ariadne que está na gaveta (poder) do Conservador. É evidente que este fio sob poder do Conservador constitui um fraco substituto da pertinência e da rapidez de resposta que se pretende em qualquer instituição custodial.
Por fim, a proposta do Conservador para fazer face às forças da mudança fundamenta-se numa nova distribuição espacial dos arquivos dos mortos e dos vivos, doravante reunidos sob a égide de um único Arquivo (Histórico). O que existe de verdadeiramente revolucionário nesta proposta? Bom, talvez o reconhecimento, por parte do Conservador, de que o mero recurso às novas tecnologias não basta para solucionar o problema. De facto, o Conservador centra-se no aspecto primordial da organização dos documentos.
Mas nem tudo pode mudar. As forças da tradição manifestam-se também na pessoa (ou corpo) do Conservador. Como? Apesar de existir uma alteração substancial ao nível da distribuição espacial dos arquivos mortos e vivos, sucede que o Conservador reforça, através do seu discurso, uma concepção de hierarquia vertical rígida e ainda fechada à discussão. Esse facto verifica-se pela repetição da expressão «baixar uma ordem de serviço» e pela sanção do subchefe que havia questionado a ordem “natural” das coisas ao chamar a atenção do Conservador para uma realidade que não era possível ignorar durante mais tempo. Afinal, o Conservador tem um estatuto a manter e um papel a desempenhar na instituição e, em época de mudança, torna-se necessário reforçar a autoridade num processo de liderança que já de si é autocrático para obstar às inevitáveis resistências que se farão sentir em todos os momentos do processo.