Voo pela sombra: a poética de Fernando Chagas Duarte – segunda parte: Alma minha gentil que te partiste
A poesia de Fernando Chagas Duarte constitui-se como uma experiência de contacto com a alteridade em que nada é deixado por explorar. Nisto se assemelha, afinal, à demanda dos cavaleiros que, abandonando tudo o que conheciam, se dispunham a um percurso incerto, por vezes fatal. Bernardim Ribeiro, Luís Vaz de Camões, Bocage são algumas das sombras que contemplamos, em arrimos depurados, à medida que folheamos as páginas de uma obra pouco consentânea com as modas que por aí pululam e que centram todo o discurso numa experiência auto-fágica de contemplação narcísica de cada sensação que assola o autor/eu lírico.
Ao invés do imediatismo, deparamo-nos, por exemplo, com uma crítica ao baile de sábado à tarde em que «só haviam mulheres a dançar//em torno de um círculo//de sobreviventes.» (Duarte, 2018, p. 97) e reencontramo-nos com a tragédia do último soberano, tão similar ao poema de Sophia (2004) sobre a princesa da cidade extrema a quem nenhum serviçal acorre, porque «sabe-se//que os dignatários fogem da sorte//quando esta se ausenta da fortuna.» (Duarte, 2018, p. 67).
À semelhança do que sucede na narrativa medieval, o autor confronta-nos com criaturas fantásticas, povoadoras dos confins da experiência com a qual podemos identificar-nos antes de dealbar o limiar da loucura: «o triste peixe que adeus-pertence» (Duarte, 2018, p. 28) e os pássaros-peixe cheirando a cardume sobre as árvores vistas por um profeta (Duarte, 2018, p. 29), ágil convite para dispensarmos como garantida qualquer uma das nossas perspetivas para que «não se imagine amor e bondade em banais ofertas//de insanidade» (Duarte, 2018, p. 64), uma vez que «há poemas de naufrágio, outros onde se//naufraga.» (Duarte, p.130), sendo uma dessas perspetivas onde se naufraga a de um lirismo exarcebado.
Em suma, o achamento não se circunscreve ao tempo físico das coisas, mas antes à perceção que delas fazemos – e essa perceção é passível de correção e de mudança, o que oferece a cada pessoa a possibilidade de acreditar naquilo que escolhe e não naquilo que lhe é imposto ou naquilo em que é persuadida a acreditar por convenção e/ou conveniência.
Reconhecendo embora o peso dessa convenção/conveniência, a exploração de um novo percurso reflexivo que a poética de Fernando Chagas Duarte postula propõe-nos a liberdade enquanto caminho possível, ainda que a mesma nos possa ser fatal. É este um dos méritos da aproximação que faz à lírica trovadoresca do amor e à narrativa cavaleiresca pautada pela incerteza da descoberta.
Bibliografia
Andresen, Sophia de Mello Breyner (2004) – Ilhas. Lisboa: Assírio&Alvim. Duarte, Fernando Chagas (2014) - … Quase cem poemas de amor e outros fragmentos. Lisboa: Chiado Editora, pp. 29, 42, 73, 86, 113 Duarte, Fernando Chagas (2017) – A hora das coisas. Lisboa: Pastelaria Studios Editora. Duarte, Fernando Chagas (2018) – Oblíquos.[S.l.]: Eu Edito. Nabais, Inês (2015, org.) – O Sonho em Poesia. Volume 1. Lisboa: Edições Hórus. Duarte, Fernando Chagas -poemas «História de Embalar» (pp.78-79) e «Nós, os loucos» (pp.80-81)