Um ensaio sobre as manhãs!
Olhos abertos ainda desatentos, sem a certeza quase pueril de estar acordado, acoitando a dúvida do sono. Luzes ungindo o terreno da cama como um padre abençoando a sequência da vida do fiel. Vestígios de sonhos na cabeça quase como uma promessa de um dia diferente dos demais.
Promessas… O casal têm na cama uma dívida, isso se… De fato toda promessa for uma dívida como diz o velho dito popular, o casal que se deita e faz da cama o sagrado, que faz da cama o lugar de pecado e perdão, o casal que insaciavelmente trepa ao anoitecer é o mesmo que nas manhãs seguintes acordam sobre as promessas de um lar vindo do edredom, e,se nas noites insaciáveis pecam, nas manhãs se arrependem e transformam o pecado no milagre do amor, duas bocas que se beijam com o gosto da noite ainda guardado em suas bocas, com a promessa de um novo dia a delatar-lhes todas as dádivas e dilemas de sua escolha.A cama é um móvel metafísico.
E se a cama por si só é uma promessa, os travesseiros são confidentes, o homem é o homem e o que seu travesseiro diz desse homem. E que confidente…Guarda o sal das lágrimas de um dia triste, o sabor amargo das desilusões, a dor vinda do fundo da alma, mas traz também consigo os ecos das juras de amor, as marcas dos sorrisos ali dentados, os fios de cabelo que caem, sintomas da velhice perpétua a que fomos condenados, restos de pensamentos e sonhos, tudo o que nos move cabe no breve espaço de um travesseiro.Para além de um objeto, uma instrumentação do nosso eu.
O corpo cansado na noite é perseverança, é cumprimento, é o o estranho privilégio do dever cumprido, mas ninguém sobrevive de metas já traçadas,ninguém sobrevive do que já passou. É pra isso que servem os olhos preguiçosos no raiar de um novo dia, pra desafiar o tempo com a eterna promessa de transformar o efêmero em eterno, em duradouro. É nas manhãs que o tempo se mostra o traidor que sempre foi, mas estamos sempre ocupados demais com os vestígios de sonhos que nos restam para entendermos a mensagem matutina do tempo:
O tempo aparece lento, a rotina é sua maior arma, nos tira do estado de alerta. É na rotina do tempo que tão paciente quanto o mais hábil pescador somos fisgados indefesos. A roda do tempo que chega sem solavancos e sobressaltos que se mantêm tão branda quanto as fases da maré, que cíclica como é nos faz surpresos com o banal, afinal o tempo, mentiroso que é nos faz crer que tudo é como antes, que nada mudou, que nossos cabelos ainda estão como de costume, que nossos rostos não estão normais, que quem nos odiava continua nos odiando, que quem nos amava continua amando…
E é por isso que as manhãs são importantes, porque sempre trazem a promessa que nós vamos perceber que a eternidade do tempo tira a eternidade do resto, e que pelo tempo ser infinito e imutável todo o resto muda, todo o resto nos surpreende, mas nós nunca percebemos, estamos sempre ocupados demais olhando os relógios.