Verdade e perseguição em Michel Foucault
Michel Foucault é o filósofo da perseguição. Assim classificá-lo soa temerário; entretanto, urge que algum apodo venha a calhar. Insisto nesse – perseguição – pois ele, na modernidade pós-1914, soube canalizar o maior perigo que ronda as trocas culturais na humanidade: o poder sobre o discurso e a perseguição da instância primeira discursiva, que é o embate equânime de ideias. Foucault disse que Mendel [biólogo, considerado o Pai da Genética, por ter “descoberto” as leis da hereditariedade] falava a verdade, “mas não estava no verdadeiro do discurso biológico de seu tempo”. Tal ditadura do discurso pode ser ainda imputada a Galileu e a diversos escritores, cujas obras eram vistas como manifestações assíncronas diante de um discurso fortemente pré-estabelecido. Nessa última conjuntura, há as figuras de Sousândrade (autor de O Guesa Errante, uma espécie de libelo indígena em consonância com os ares da modernidade, sem deixar de lado o primitivismo – o indício de que a antropofagia preconizada pelos modernistas de 22 ainda era forte demais para a sociedade escravocrata e imperial do Brasil finissecular dos 1800) e de Adolfo Caminha (com seu romance O Bom Crioulo, cujo assunto – a relação homossexual entre um negro e um grumete em fins do século XIX – não mereceu o indigesto verniz naturalista, que a tudo reduzia como disfunção biológica e, por isso, sofreu crítica virulenta do discurso em voga).
Esse último exemplo servirá para trazer a lume os três tipos de interdições que Foucault relata. O protagonista de O Bom Crioulo é o negro Amaro, de índole pacífica, exceto quando bebe. No momento do açoitamento, Caminha o descreve: “Metido em ferros no porão, Bom-Crioulo não deu palavra. Admiravelmente manso, quando se achava em seu estado normal, longe de qualquer influência alcoólica, submeteu-se à vontade superior, esperando resignado o castigo. — Reconhecia que fizera mal, que devia ser punido, que era tão bom quanto os outros, mas, que diabo! estava satisfeito: mostrara ainda uma vez que era homem... Depois estimava o grumete e tinha certeza de o conquistar inteiramente, como se conquista uma mulher formosa, uma terra virgem, um país de ouro... Estava satisfeitíssimo” (Caminha, ADOLFO). Sob a égide do discurso naturalista, o qual conformava os romances da época como obras de tese calcadas no Determinismo social e físico, Caminha carecia do certificado de verdade concebida por tal patamar discursivo. O negro era exaltado em sua virilidade e potência física, e não havia sanção ao plano dele em conquistar o jovem loiro Aleixo. Aí entra Foucault para explicar o ostracismo a que esse romance esteve condenado. A primeira interdição foucaultiana é o tabu do objeto: consoante à época e à classe hegemônica, não se pode dizer tudo. Há assuntos interditados. Assim como a Igreja Católica elaborara uma lista de obras proibidas a seus fiéis (o famigerado Index), existem temas proibidos ou cuja abordagem é consagrada pelo discurso.
A segunda interdição é o ritual da circunstância. Diz respeito onde algo é dito, ou seja, aos estamentos sociais se espera a reprodução de um determinado discurso. Como exemplo concreto, há o caso de Gustave Flaubert, que lançou um romance, Madame Bovary, no qual o narrador se isentou de condenar o adultério da protagonista Emma, tendo, inclusive, a ousadia de imputar a “culpa” das reiteradas traições dela pela vida medíocre que lhe era imposta. No julgamento dele – sim, ele foi levado aos tribunais –, Flaubert disparou: “Madame Bovary c'est moi”. Ao romancista, havia igualmente temas interditos e esperava-se de tal posição uma ratificação do discurso em que ele se inseria: classe burguesa, velando pelos valores familiares que iam-se descortinando sob o avanço do capitalismo.
A terceira interdição é o direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala. Esse item se imiscui nos outros dois anteriores e corrobora uma faceta dúplice que não exclui as partes que a compõem: o ato de discursar é vedado à maioria e, ainda, presta-se a uma vigilância constante. Perseguem-se os assuntos, com o respaldo do silenciamento do sujeito.
Essas interdições se vazam na intersecção com a Psicanálise: o discurso não é apenas a manifestação do desejo, mas sim o apoderamento dele também se move por meio do desejo.