Infância
Estava na mesa com meu primo. Havia três cadernos espalhados; minha mãe lavava a louça do almoço. Meu pai, estirado no sofá, pululava entre os canais de TV, dos quais não me recordo a programação.
De repente, a mãe deixa escapar um prato, cujo barulho da queda na pia eleva meus olhos do uníssono dos estudos. Estava ensinando meu primo aqueles conceitos de ditongo, hiato e tritongo... era saboroso brincar com as letras, pronunciar delicada e pausadamente as palavras, quase um precursor da escansão de versos.
Ela tentou disfarçar o desnorteio. Riu-se, virou-se rapidamente para as duas crianças, fechou o cenho quando divisou meu pai, o qual não escondeu um esgar. - Não aguento mais, saiu como um sopro da boca de minha mãe.
Ao que, incontinenti, ele afirmou:
- Ué, então te manda!
A caneta desabou de minha mão. Aos 8 anos, cada palavra disparada a ferro e fogo parece realmente feita de tais elementos... a sinceridade embebe os ouvidos infantis, desde a promessa daquele doce na feira até mesmo uma ríspida conversa. O mundo dos adultos casados assumia uma dimensão castelã.
Rispidezas cruzavam o ar em profusão, após o primeiro embate. Enquanto isso, não pude mais falar sobre as vogais que se unem ou que se separam. Os olhos marejados impediam-me de divisar algo a ser ensinado.
- Outra como ela não vai achar mesmo.
Não lembro o tom de minha voz aos oito anos. Não sei se a frase zarpou de mim com lâmina dos tons mais agudos, se saiu amarela de covardia. Ela, contudo, fez o homem acachapado no sofá voltar os impropérios a mim.
- Cala a boca, menino de merda.
Tive medo, pois a voz dele não saíra grossa, mas carregada de algo tão metálico, que mais tarde descobri chamar-se desprezo. Pela primeira vez, aquilo chegara a mim, dois ouvidos acostumados aos mimos da mãe, das minhas tias e até das professoras do colégio.
Desde então, um anjo, talvez o responsável pela minha guarda, abdicou de seu posto e o passou a outra entidade, não tão parcimoniosa e tampouco serena, a qual incutira num hiato entre o arfar do desespero e da queda das lágrimas:
- Vais defender tua mãe.
Ergui o rosto para cima, para os lados. Esqueci meu primo. Queria achar a voz.
- Não agora, mas muito mais tarde.