Análise do poema Os Arlequins, de Machado de Assis
Sátira – 1864 Que deviendra dans l’éternité l’âme d’un homme qui a fait Polichinelle toute sa vie? Mme. De Staël
Musa, depõe a lira!/ Cantos de amor, cantos de glória esquece!/ Novo assunto aparece/ Que o gênio move e a indignação inspira./ Esta esfera é mais vasta,/ E vence a letra nova a letra antiga!/ Musa, toma a vergasta,/ E os arlequins fustiga!/
Como aos olhos de Roma,/ — Cadáver do que foi, pávido império/ De Caio e de Tibério, —/ O filho de Agripina ousado assoma;/ E a lira sobraçando,/ Ante o povo idiota e amedrontado,/ Pedia, ameaçando,/ O aplauso acostumado;/
E o povo que beijava/ Outrora ao deus Calígula o vestido,/ De novo submetido/ Ao régio saltimbanco o aplauso dava./ E tu, tu não te abrias,/ Ó céu de Roma, à cena degradante!/ E tu, tu não caías,/ Ó raio chamejante!/
Tal na história que passa/ Neste de luzes século famoso,/ O engenho portentoso/ Sabe iludir a néscia populaça;/ Não busca o mal tecido/ Canto de outrora; a moderna insolência/ Não encanta o ouvido,/ Fascina a consciência!/
Vede; o aspecto vistoso,/ O olhar seguro, altivo e penetrante,/ E certo ar arrogante/ Que impõe com aparências de assombroso;/ Não vacila, não tomba,/ Caminha sobre a corda firme e alerta;/ Tem consigo a maromba/ E a ovação é certa./
Tamanha gentileza,/ Tal segurança, ostentação tão grande,/ A multidão expande/ Com ares de legítima grandeza./ O gosto pervertido/ Acha o sublime neste abatimento,/ E dá-lhe agradecido/ O louro e o monumento./
Do saber, da virtude,/ Logra fazer, em prêmio dos trabalhos,/ Um manto de retalhos/ Que à consciência universal ilude./ Não cora, não se peja/ Do papel, nem da máscara indecente,/ E ainda inspira inveja/ Esta glória insolente!/
Não são contrastes novos;/ Já vêm de longe; e de remotos dias/ Tornam em cinzas frias/ O amor da pátria e as ilusões dos povos./ Torpe ambição sem peias/ De mocidade em mocidade corre,/ E o culto das idéias/ Treme, convulsa e morre./
Que sonho apetecido/ Leva o ânimo vil a tais empresas?/ O sonho das baixezas:/ Um fumo que se esvai e um vão ruído;/ Uma sombra ilusória/ Que a turba adora ignorante e rude;/ E a esta infausta glória/ Imola-se a virtude./
A tão estranha liça/ Chega a hora por fim do encerramento,/ E lá soa o momento/ Em que reluz a espada da justiça./ Então, musa da história,/ Abres o grande livro, e sem detença/ À envilecida glória/ Fulminas a sentença./
A palavra arlequim provém do italiano arlecchino, máscara típica de personagem bufão. Sob a batuta da máscara (e toda a simbologia que ela encerra – fingimento, escusa), o poema é uma sátira, no sentido mais estrito do termo (do latim satira, um gênero de mistura, visto pejorativamente já que a elite culta romana valorizava os ditames fornecidos pelas poéticas gregas e latinas. Em suma, propalavam-se os gêneros puros e íntegros, menosprezando a miscigenação). Segundo Machado, os versos falam de “uma classe que se encontra em todas as cenas políticas – é a classe que, como se exprime um escritor, depois de darem ao seu povo todas as insígnias da realeza, quiseram completar-lha, fazendo-se eles próprios os bobos do povo (Nota do autor)”.
O primeiro verso trata da musa, nome dado a cada uma das nove filhas de Zeus e Mnemósine, que dominavam a ciência universal e presidiam as artes liberais. Entre os românticos, adquiria também o matiz da mulher amada, a qual desencadeava o processo criativo. Há, portanto, um tom solene que permeia o trato de tal temática. Na primeira estrofe, entretanto, Machado conclama a presença da musa não como fomentadora de uma arte elevada ou de alguma composição sublime: pede que ela deponha a lira (instrumento musical clássico) e tome a vergasta (varinha para açoitar); que ela esqueça os cantos amorosos e glorificantes em detrimento de um novo assunto; que a letra nova tem supremacia sobre a letra antiga. Tal descalabro perante o símbolo artístico consolida o que Oscar Wilde dissera: “o homem quase nada nos diz quando fala em seu nome; deem-lhe uma máscara e ele dirá a verdade (O AMOR ROMÂNTICO E OUTROS TEMAS. Edusp. 1979)”. A sátira se torna periclitante ao confrontar o que pensa o poeta mexicano Octavio Paz do papel da poesia: “é tornar sagrado o Mundo”, algo similar ao que o filósofo alemão Martin Heidegger expressara ao dizer que a função do poeta é “dar nome ao sagrado”.
Na segunda estrofe, há a menção aos devaneios políticos do Império Romano: primeiro, fala-se no despotismo do imperador Nero, o qual se via como artista e forçava os presentes a aplaudi-lo – “E a lira sobraçando,/Ante o povo idiota e amedrontado”. Parece aquilo que Maquiavel categoricamente atestou, de que o temor é uma tática de submissão mais eficaz que o amor. Também menciona Calígula, cujos distúrbios mentais fizeram-no imortal. Diante da ilação de figuras torpes que lideraram o maior império de então, o poeta se questiona: “E tu, tu não te abrias,/Ó céu de Roma, à cena degradante!/E tu, tu não caías,/Ó raio chamejante!”.
A terceira estrofe traz o Machado niilista que todos conhecem, aquele crítico mordaz de todo o cientificismo e novidade tomados como verdades absolutas. O niilismo machadiano se faz por meio de um esquema tácito entre autor e leitor, no qual o primeiro espera do segundo o compartilhamento de certo arcabouço cultural para, em seguida, tirar dele o véu da prodigalidade. Di-lo: “Tal na história que passa/Neste de luzes século famoso”. O tempo a que ele se refere não está definido: ora pode ser o século de ouro do Império Romano (I d.C.), ora o século XVIII (o Iluminismo), ora o século XIX (Segunda Revolução Industrial, advento da eletricidade). Independente da época, é a falácia do progresso que ele desdenha.
As próximas quatro estrofes perfazem uma descrição de como se engana um povo, aliando aspecto vistoso, olhar seguro, altivo e penetrante, tal segurança, ostentação tão grande a um propósito torpe – “Tornam em cinzas frias/O amor da pátria e as ilusões dos povos”. Machado se porta como um reduto de anexins (um adagiário atemporal), soando similar ao que Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista, afirmou: “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.Por fim, o poeta esmorece o tom da ironia e, na última estrofe, roga à musa a proferimento de uma sentença ante tanto descalabro.
Outro ponto considerável é a poesia, digamos, social que Machado desenvolveu, ao par de sua prosa. Até mesmo os expedientes para a crítica mordaz são idênticos. A metodologia para tanto, na poesia, ou se usa o formato tradicional (soneto, écloga etc), ou se vale de temática anacrônica.