Análise do poema Caridade, de Machado de Assis
A CARIDADE (1864)
Ela tinha no rosto uma expressão tão calma / Como o sono inocente e primeiro de uma alma / Donde não se afastou ainda o olhar de Deus; / Uma serena graça, uma graça dos céus, / Era-lhe o casto, o brando, o delicado andar, / E nas asas da brisa iam-lhe a ondear / Sobre o gracioso colo as delicadas tranças. / // Levava pelas mãos duas gentis crianças. // Ia caminho. A um lado ouve magoado pranto. / Parou. E na ansiedade ainda o mesmo encanto / Descia-lhe às feições. Procurou. Na calçada / À chuva, ao ar, ao sol, despida, abandonada / A infância lacrimosa, a infância desvalida, / Pedia leito e pão, amparo, amor, guarida. // E tu, ó caridade, ó virgem do Senhor, / No amoroso seio as crianças tomaste, / E entre beijos — só teus — o pranto lhes secaste / Dando-lhes pão, guarida, amparo leito e amor. //
O poema se esbate na religiosidade; contudo, opera numa união do transcendente à questão das obras. O livro bíblico do apóstolo Tiago, no Novo Testamento, diz: “Meus irmãos, que interessa se alguém disser que tem fé em Deus, e não fizer prova disso através de obras? Esse tipo de fé não salva ninguém”. Machado de Assis realiza a percepção em forma de versos da máxima que apregoa: a fé sem obras é morta.
Para tanto, o poeta traz a imagem da mulher como provedora, em clara alusão à Virgem Maria. Na história das religiões, percebe-se um deslocamento de gênero na gênese do mundo. O mitólogo americano Joseph Campbell dividiu em quatro grupos os mitos conhecidos da criação, correspondendo estes grupos às etapas cronológicas da história humana. Na primeira etapa, o mundo seria criado por uma deusa-mãe sem auxilio de ninguém. Na segunda etapa, o trabalho primordial fora feito por um deus andrógino ou um casal criador; já na terceira, um deus macho toma o poder de uma deusa ou cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial. Na quarta, por fim, um deus macho criaria o mundo sozinho, sem intervenção feminina, o que representaria a passagem para o patriarcalismo (CAMPBELL, Joseph. AS MÁSCARAS DE DEUS – MITOLOGIA OCIDENTAL. Ed. Palas Athena. 2004).
O poema, sem deixar a posição relevante de um deus masculino, coloca nas mãos de uma mulher – como geradora de filhos e como amamentadora – a premissa de ofertar caridade a quem necessita. No caso, a figura frágil é a infância. Segundo Philippe Ariés, a concepção sobre a criança teria começado a se formar com o fim da Idade Média, sendo inexistente na sociedade desse período. No Medievo, a criança era um adulto em miniatura, ou melhor, nas palavras do medievalista James Schultz, “um adulto imperfeito”. Foi com a ascensão definitiva da burguesia que a infância passou a ser objeto de preocupação do poder público e, por conseguinte, de demandas capitalistas: a educação universal para crianças e toda uma penca de produtos vistos sob a batuta de “infantil".
O poema enceta, logo, um ensejo que vinha sendo construído, de auxiliar à faixa etária agora vista como primordial no desenvolvimento humano. A figura da mãe – cujo maior simbolismo é a Virgem Maria, que povoa o ideário ocidental como mãe extremosa – é encarregada de trazer os desvalidos para junto de si.