Poema Visio, de Machado de Assis: crítica
Eis o poema Visio, presente no primeiro livro de poemas do egrégio escritor Machado de Assis:
Eras pálida. E os cabelos, Aéreos, soltos novelos, Sobre as espáduas caíam... Os olhos meio cerrados De volúpia e de ternura Entre lágrimas luziam... E os braços entrelaçados, Como cingindo a ventura, Ao teu seio me cingiam...
Depois, naquele delírio, Suave, doce martírio De pouquíssimos instantes, Os teus lábios sequiosos, Frios, trêmulos, trocavam Os beijos mais delirantes, E no supremo dos gozos Ante os anjos se casavam Nossas almas palpitantes...
Depois... depois a verdade, A fria realidade, A solidão, a tristeza; Daquele sonho desperto, Olhei... silêncio de morte Respirava a natureza — Era a terra, era o deserto, Fora-se o doce transporte, Restava a fria certeza.
Desfizera-se a mentira: Tudo aos meus olhos fugira; Tu e o teu olhar ardente, Lábios trêmulos e frios, O abraço longo e apertado, O beijo doce e veemente; Restavam meus desvarios, E o incessante cuidado, E a fantasia doente.
E agora te vejo. E fria Tão outra estás da que eu via Naquele sonho encantado! És outra – calma, discreta, Com o olhar indiferente, Tão outro do olhar sonhado, Que a minha alma de poeta Não vê se a imagem presente Foi a visão do passado.
Foi, sim, mas visão apenas; Daquelas visões amenas Que à mente dos infelizes Descem vivas e animadas, Cheias de luz e esperança E de celestes matizes; Mas, apenas dissipadas, Fica uma leve lembrança, Não ficam outras raízes.
Inda assim, embora sonho,
Mas, sonho doce e risonho,
Desse-me Deus que fingida
Tivesse aquela ventura
Noite por noite, hora a hora,
No que me resta de vida,
Que, já livre da amargura,
Alma, que em dores me chora,
Chorara de agradecida !
Neste poema, Machado de Assis vale-se de um expediente muito caro à representação da mulher em Gregório de Matos. O poeta baiano do século XVII se notabilizara pela aproximação do cariz secular (tentador) da figura feminina com a religiosa da feminilidade como detentora de beleza angelical . A palidez de heroína romântica é usada na primeira estrofe; à revelia de fragilidade, exalta uma nuance sensual, já que os cabelos caem-lhe sobre os ombros.
Na segunda estrofe, entretanto, a representação feminina do poema o aproxima do caráter sensual do lirismo de Castro Alves, pois a mulher se dota de impulso e de propósito – “ao teu seio me cingiram [os braços entrelaçados]”. A terceira parte insiste nos oximoros (aproximações de palavras de sentido oposto, a fim de reforçar a expressão). São os pares sequiosos-frios, anjos-almas palpitantes, por exemplo, que corroboram uma personagem paradoxal representando um universo quase onírico de sensualidade.
A quarta estrofe promove um deslocamento do onírico – sensual – para a crueza do desafeto. Utiliza-se a natureza para incrementar o quadro de desencanto. Não há a austeridade de Wordsworth: a moldura natural se apresenta tal como a viam os gregos antigos. Para estes, a natureza:
[conhecida por ‘physis’] tinha um sentido dinâmico, traduzia uma força latente de tipo germinativo, sem que houvesse uma distinção nítida entre o animado e o inanimado. Múltiplas forças vinham percorrê-la, e essas forças representariam, afinal, uma divindade na medida em que dela participavam (GUIMARÃES, Fernando (prefácio e tradução). POESIA ROMÂNTICA INGLESA. Ed. Relógio d’água.1992).
O uso de elementos abstratos – solidão, tristeza, sono desperto – atende à escolha de um entre dois níveis de concretização dos esquemas narrativos: o temático e o figurativo. Este é mais concreto que aquele, uma vez que emprega substantivos e adjetivos concretos, nomes próprios e seres animados dotados de inteligência racional ou que nela estejam imersos. O esquema temático busca classificar a realidade, ordená-la ou interpretá-la; o figurativo tenciona construir um cenário palpável de personagens. O temático, portanto, é usado nessa guinada do poema em questão . O programa narrativo continua nas próximas estrofes. O poeta executa, nos versos subsequentes, uma passagem do figurativo para o temático, pois enumera as mudanças de atitudes da amada em função da ausência de ações afetivas que desapareceram. As últimas duas estrofes cotejam ora com o figurativo, ora com o temático. Em termos de temporalidade, não mais avançam: refestelam-se no senso comum do amor romântico, calcado na inacessibilidade da mulher amada.