JOÃO DE DEUS E A SOBREVIDA DO ROMANTISMO PORTUGUÊS
A recepção da poesia obteve um momento célebre no século XIX, sob a estética romântica. A classe burguesa – que cumulou as damas com o ócio e com as banalidades da vida na corte – ensejou espaços culturais e físicos entre os gêneros – ao homem, os gabinetes e a ágora (o político em todos os locais destinados a isso, como assembleias, congressos e palácios reais); à mulher, a administração doméstica e os salões repletos de damas ansiosas por prestigiar as belas-letras. Esse espaço feminino ainda sofria mais uma segmentação: diga-se que a mulher abastada poderia conferir os artefatos literários. À mulher pobre ou negra, eram negadas tais ócios e benesses.
O Romantismo – que grassou no Ocidente até a década de 1870 – foi a literatura ideal para os deleites. Explorando a alma humana, trazendo à tona suspiros e anseios por heróis sem poderes especiais, a estética literária romântica reproduziu, à exaustão, os personagens planos – aqueles que apresentam poucas características, as quais podem ser resumidas em dicotomia frágil: bons versus maus.
O estilo romântico não foi uniforme, desde a aparição de Goethe, na Alemanha, ao ocaso da escola no condoreirismo e na deflagração da luta social – exemplos desses dois aspectos são Castro Alves, no Brasil, e Victor Hugo, na França. Na Europa, o Romantismo começou com as tintas da morte – Os Sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe, pôde ter desencadeado uma onda de suicídios no Velho Mundo, segundo a tradição conta. No Brasil, o ambiente buscava a construção de nação independente – o amor não polemizou, logo de início, sendo um coadjuvante ante o nacionalismo indianista. O ultrarromantismo viria na metade do século XIX e catapultava, sob a anuência das belas-letras, a vida breve e intensa dos boêmios, dos burgueses insatisfeitos com o derredor: era a voz dos desajustados, daqueles ousados e dissidentes do casamento heterossexual e da prole numerosa. Foram vários os poetas que morreram com menos de 25 anos nesse período: Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Álvares de Azevedo etc.
A fórmula do amor trágico e irrealizável cansou, e a verve romântica se metamorfoseou em sensualismo e pitadas de picardia – o que preparou o terreno para a eclosão do Realismo e da frieza poética do Parnasianismo. Claro que haveria dissidentes aqui, ali e acolá desse amor comedido e mais carnal. Atualmente, o amor trágico sofre o revés da sociedade de consumo, conforme cita Maria das Graças Rodrigues Paulino, doutora em Teoria Literária e professora da UFMG: “A ordem do consumismo (Lipovetsky) cuja história se inicia no fim do século XIX no Ocidente, revela, desde a segunda metade do século XX, sua face mais cruel, ao levar os sujeitos à necessidade de serem sempre “felizes”, vivendo numa sociedade que nega a fala dos sofrimentos e faz do trágico um grande espetáculo midiático, aparentemente contrário a outras instituições, como algumas organizações culturais que escolhem para crianças textos amenos, e certa psiquiatria, que, ignorando o poder psicoterapêutico da palavra, continua receitando antidepressivos para quaisquer tristezas de seus pacientes”.
O Romantismo logrou ser longevo em certos países graças ao formato ameno que muitos poetas lhe deram. Após o alarido do Ultrarromantismo – e seu afamado Mal do Século: dor e sofrimento jogados à esfera pública -, o Romantismo, como dissera, passava por mutação. Ganhavam notoriedade os escritores envolvidos em polêmicas sociais, com discursos embebidos no Socialismo nascente. Em Portugal, por exemplo, a década de 1870 assistia ao desmantelamento dos supostos ícones da cultura lusitana e à crítica mordaz à monarquia, incapaz e atônita em acelerar as reformas que poriam o país no eixo da modernidade.
É em Portugal que busco o exemplo da coexistência de um autor simples e romântico com os poetas reformadores e avessos à tradição. O escritor e pedagogo João de Deus, que vivera de 1830 a 1896, mereceu o elogio de ninguém menos que o realista Antero de Quental, protagonista da reviravolta realista na literatura portuguesa. João escrevia versos eivados do amor, mas não do sentimento dolorido e doentio dos ultrarromânticos ou dos decadentistas, já presentes no ocaso do século XIX. Críticos da época já o bendiziam: “Nunca ninguém teve a arte de dizer coisas mais belas em frases tão simples”, dissera Mendes dos Remédios; “O mais espontâneo e genial burilador da poesia portuguesa”, anotara Fidelino deFigueredo.
O crítico e estudioso brasileiro Celso Luft afirmou que a linha mestra da poesia do português João de Deus estava na “sublimação do amor”, a qual lembra o “neoplatonismo renascentista camoniano”. Fala-se em neoplatonismo no tocante ao erigir a fissura entre dois mundos: o sensível aos olhos e ao toque – por vezes, imperfeito e cheio de armadilhas – e o das ideias – formas perfeitas e imutáveis dos conceitos que, palidamente, conhecemos. Platão, nesse ínterim, alardeia para o perigo das paixões arrebatadoras e para a pintura não verdadeira das coisas do mundo: isso o levou a expurgar os poetas da cidade ideal, descrita na obra República. O filósofo grego, imbuído da condenação dos excessos amorosos, afirmara: “Onde reina o amor sobram leis” – é preciso frear a entrega aos sentidos de alguma forma.
João de Deus não se dizia grande poeta, embora fosse festejado em vida como um grande versejador. Sua linguagem simples e a pouca variedade temática – o lirismo dominante diante das sátiras e das imitações – fizeram-no bastante lido. O amor nos versos de João difere do Ultrarromantismo: ele chegou a condenar-lhe o excesso, em um jornal em 1863. A mulher amada sofre excesso de adjetivação e metáforas consagradas à beleza feminina – são frequentes as associações da amada à natureza e à figura angelical. Porém, o enlace não está descartado – aí difere dos poetas românticos de seu tempo. A mulher, embora superlativamente bela, não está distante do amado, que pode ascender ao trono e tocá-la. Para tanto, o escritor usa constantemente o subjuntivo nos verbos, como indicador da possibilidade e do conselho. Vejamos alguns versos dele:
Beijo na face
Pede-se e dá-se:
Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo:
Vá!
Um beijo é culpa, Que se desculpa: Dá? A borboleta Beija a violeta: Vá!
Um beijo é graça, Que a mais não passa: Dá? Teme que a tente? É inocente... Vá!
Guardo segredo, Não tenha medo... Vê? Dê-me um beijinho, Dê de mansinho, Dê!
*
Como ele é doce! Como ele trouxe, Flor, Paz a meu seio! Saciar-me veio, Amor!
Saciar-me? louco... Um é tão pouco, Flor! Deixa, concede Que eu mate a sede, Amor!
Talvez te leve O vento em breve, Flor! A vida foge, A vida é hoje, Amor!
Guardo segredo, Não tenhas medo Pois! Um mais na face, E a mais não passe! Dois…
Lido o poema, os versos ratificam a possibilidade amorosa e as formas verbais indicadoras de possibilidade – leve, mate, dê – e de conselho contundente – não tenhas, não passe. O intercurso amoroso – beijo, toques – não invalida a pureza do amor, pois há o segredo afiançado na palavra do ser enamorado. João de Deus, portanto, equilibra-se num lirismo quase ingênuo – que faz lembrar Casimiro de Abreu – e no trato comedido às fainas do amor. Suas relações sociais afáveis com os poetas realistas também serviram como um escudo a críticas severas que tal grupo destilava a seus opositores. João de Deus igualmente se destacou no esforço alfabetizador, ao coligir uma cartilha para uso nas escolas portuguesas. Houve quem o criticasse por esse feito; contudo, tal empreendimento angariou mais simpatia ao simples poeta.