Doida varrida
Desde criança ela gostava de brincar por entre as poças dágua que a chuva deixava depois das visitas e era sempre o mesmo ritual: da janela de casa esperava a chuva tomar corpo e quando via que a festa estava no seu auge, por entre raios e trovões lá ia ela, correndo e descendo a rua, a brincar nos redemoinhos de vento, a sorrir com a água lambendo o seu corpo e tomando conta de tudo ao redor,das plantas, dos bichos escondidos nas árvores, das águas paradas que se juntavam à chuva que descia sem se preocupar ou se aperceber da realidade aqui de baixo. Em todos os momentos a chuva esteve presente.
No aniversário de sete anos quando quebrou um dente, aos treze anos no dia em que descobriu-se mulher e aos 22 quando pela primeira vez se entregou ao primeiro homem que amou.Em todos estes momentos a água vinha aos borbotões, companheira,se confundindo com seus cílios, cabelos e boca, deslizando por seu colo e umbigo, excitando,fundindo, ferindo,umidificando e acarinhando tudo o que ela tinha de melhor e de pior, que a chuva era também redenção e limpeza de dias ruins,de momentos vazios e escuros.
A chuva para ela era mesmo assim, momento de encontro consigo mesma, sagrado oráculo onde ela guardava suas perguntas mais secretas e inquietantes. Para onde ela iria? O que faria da vida agora que ele a havia deixado? Por que o amor era então esta coisa oca e sem sentido, sentimento louco que acariciava tanto quando enlouquecia? Ah! que a chuva lambesse e tirasse dela tudo o que havia de ruim e que quando voltasse a encontrasse melhor,mais calma e mais sábia.
Bebendo a chuva! Colhendo a água! Encharcando-se de amor por si mesma e pela vida!Seguiria, sempre assim a moça, e quando os vizinhos a vissem passar e a chamassem de doida varrida, de certo a mesma não se importaria, pois ela era doida sim,completa e integralmente doida, alucinadamente doida pela vida, incrivelmente e absurdamente feliz.