La (não tão) Dolce Vita
É um filme encantador, os cenários são belos, os personagens interessantíssimos. Tudo se passa nos anos 60 e o fato de ser um filme franco-italiano em preto e branco dá um charme a mais nesse, já tão glamouroso, filme. La dolce vita, que é considerado como a transição do neo-realismo ao simbolismo do diretor Federico Fellini, mostra e faz uma crítica aberta ao jornalismo sensacionalista. Assisti todo o filme encantada, com os personagens, os cenários, os figurinos, a trilha sonora, tudo nesse filme encanta. Entretanto, ao final do filme, quando desliguei a televisão, me perguntei: "Qual é o propósito desse filme?". Bem, se você já assistiu, deve concordar comigo que tudo que o personagem principal, Marcello, fez, deu em nada.
O filme passa-se em Roma e conta a história de Marcello Rubini(Marcello Mastroianni), que é é um jornalista mulherengo que não escreve e está dominado por certa impotência. Comecei a pensar um pouco e entendi: O filme é um alegoria para o vazio. É uma metáfora felliniana do escritor-jornalista-narrador em crise frente a uma sociedade de aparências. E vou além, o filme mostra também a culpa, o que me levou a pensar no barroco.
Resolvi assistir todo o filme de novo levando em conta essa minha teoria, o que não é uma coisa tão simples já que o filme tem quase 3 horas de duração, e tive uma confirmação logo na primeira cena. A abertura do filme é altamente alegórica: Marcello se apresenta junto ao seu parceiro, o fotógrafo Paparazzo (de cujo nome se derivou toda uma cultura da celebridade), pilotando um helicóptero em que está dependurada uma estátua de Cristo, em suposta missão para o próprio papa, enquanto tentam conseguir o telefone de algumas garotas que tomam banho de sol.
As personagens parecem ser todas planas, sem personalidade, parecem se desdobrar umas das outras, sem nada em comum que não seja a falta de sentido.
Marcello, chega em um certo ponto da narrativa a invejar o seu amigo Steiner, músico e intelectual aparentemente bem resolvido, pai de família e anfitrião de um renomado meio de artistas e pensadores. Mas, ele de súbito mata seus dois filhos e se suicida, abandonando contraditoriamente a solidez e a estabilidade que conquistara na arte e na vida. Esse episódio deixa o telespectador um tanto confuso, se o pai de família não está bem, o homem solteiro e boêmio também não, o que nos resta?
É certo que as referências ao barroco são diversas, desde a Tocata e Fuga em ré menor,de Bach, até a Fontana di Trevi , onde o amor artificial e apenas aparente, mas deslumbrante, entre Marcello e Sylvia, uma linda atriz sueco-americana é semirrealizado e, logo, frustrado.
O filme mostra também a aristocracia, que vive em palácios e ambientes religiosos, mas se comporta promiscuamente. A dualidade entre o baixo e o alto, a crônica barata e a alta literatura, a vida vulgar ou a fiel namorada, a fé católica ou a descrença,nos remete a arte barroca.
A última cena, a mais forte do filme em minha opinião, ocorre numa praia após uma orgia, em que apenas se anuncia o sexo e não se chega a nenhuma realização a não ser a destruição do espaço onde se realiza e a completa decadência de todos os seus participantes. À luz da aurora, todos saem da casa e vão em direção a um grupo de pescadores recém-chegados do mar. Eles trazem uma raia gigante morta e de olhos bem abertos, a encarar os céus. A força metafórica que dá impulso ao filme, por meio da imagem dessa criatura marítima que, da morte, os encara, pode simbolizar a condução de Marcello a si mesmo, a encontrar-se com sua própria imagem, com sua própria metáfora, com seu próprio vazio. Daí resta-lhe buscar comunicação com os céus – uma jovem virgem, que apenas cruzara o caminho da personagem durante o filme, lhe aparece do outro lado da praia, dividida por um canal –, mas, agora, a comunicação já não é possível: é o fim de Marcello e de La dolce vita.
É considerado um clássico do cinema e considerado pela crítica especializada e por alguns cinéfilos como um dos melhores filmes de todos os tempos. O filme é todo glamour, um glamour que inevitavelmente nos remete ao vazio.