Fingir matar, fingir morrer
A cena é bastante conhecida. Diante da invasão de cangaceiros à cidade de Taperoá, na Paraíba, João Grilo finge matar o amigo Chicó, que escondia embaixo da camisa uma bexiga com sangue falso. Uma punhalada acerta em cheio a barriga do sertanejo, que tomba moribundo. Depois da falsa morte, ele "ressuscita" ao som da gaita "mágica" de João Grilo, supostamente benzida pelo Padre Cícero.
O trecho de O auto da Compadecida, peça escrita por Ariano Suassuna e posteriormente adaptada para a televisão e para o cinema, parece absolutamente original. Quando o lemos (ou assistimos) pela primeira vez, só podemos dar créditos à capacidade de invenção do autor, à engenhosidade com que traduziu, na cena, a maneira sagaz do pobre sertanejo lidar com as adversidades.
Sem jamais tirar o mérito de Suassuna, é curioso lembrar que a literatura, o teatro e até mesmo as produções audiovisuais são fortemente influenciadas por narrativas do passado. Isso não configura, a rigor, plágio, e sim uma natural apropriação de histórias ouvidas, lidas e assistidas ao longo da existência. A partir da bagagem cultural de cada um, é possível criar o "novo", sem medo de se decalcar alguns pormenores (como é o caso).
A peça mais conhecida de Ariano foi escrita em 1955. Cerca de 350 anos antes, Miguel de Cervantes publicava sua magnum opus, Dom Quixote de La Mancha. A certa altura do livro, é descrita a cerimônia de casamento entre Camacho e Quitéria. A união havia sido arranjada pelos pais da moça, a despeito de ela ser apaixonada pelo vizinho, Basilio, que também a ama.
Em dado momento da celebração, Basílio surge aos gritos e diz que, sendo ele um obstáculo para a felicidade do casal, está decidido a morrer. Então saca uma espada, apoia no chão e se joga contra a lâmina, que atravessa o seu corpo. Arquejando, prestes a dar o último suspiro, ele insiste que Quitéria lhe dê a mão em casamento. Diante da situação, Camacho concorda, e então Basílio se levanta e revela o truque: a espada havia furado um tubo de sangue, e não o seu corpo.
Pois bem, um estratagema semelhante já havia sido registrado muito antes da publicação de Dom Quixote, pelo escritor Aquiles Tácito, de Alexandria, que viveu no século 2 ou 3. No livro erótico Os amores de Leucipe e Clitofonte, o autor descreve com riqueza de detalhes como a protagonista é assassinada, cena que Clitofonte, o amante, testemunha a uma certa distância, sem poder fazer nada.
Mais tarde, no velório de Leucipe, é revelado que tudo havia sido encenação. Colegas fingiram matar a mulher com uma faca de lâmina retrátil, comum nos teatros, e uma bexiga cheia de sangue escondida sob as roupas dela.
Terá sido coincidência? Não podemos afirmar com toda a certeza que Aquiles Tácito influenciou Miguel de Cervantes, e que este, por sua vez, inspirou Ariano Suassuna. Mas é sempre bom lembrar que todas as narrativas são, de algum modo, variações de outras, e podem conter colagens, referências, adaptações.
PARA LER
O auto da Compadecida - Ariano Suassuna
Dom Quixote de La Mancha - Miguel de Cervantes
Os amores de Leucipe e Clitofonte - Aquiles Tácito
PS: A ligação entre as cenas de Cervantes e Aquiles Tácito é apontada no ensaio "Travessia marítima com Dom Quixote", de Thomas Mann