Obra humana [um pequeno texto]
Aujourd’hui, tout le monde a peur.
A cidade nos engole, nos converte em pequenas cápsulas isoladas, nos enlouquece, nos adoece.
O que é a cidade?
Pensando para além do mapa, da topografia, da cartografia, dessas ruas, desse formato formado, o que é a cidade? O que somos na cidade, seguindo caminhos sugeridos, menos trânsito ali, mais rápido por aqui? Cuidado por onde anda.
Esse bairro é perigoso. Essa rua é perigosa. Essa pessoa é perigosa.
Hoje, todo mundo tem medo.
Dizem que toda a cidade é perigosa, que nos engole, que nos converte em pequenas cápsulas isoladas, nos enlouquece, nos adoece.
Mas – o que é a cidade?
José Asunción vê, passando pelos fios, uma mensagem de amor e nos fala disso, dessa cidade invisível de Calvino – aquilo que não se nota, que não está posto, não está dado. Não é o trem, nem o poste, nem a fiação, nem mesmo a paisagem na janela ou o próprio corpo sentado, indo a algum lugar. É o (im)possível telegrama, essa obra humana que nos escapa [um envio] e vai na direção contrária – cidade.
É como nos pregadores de Elida com palavras de outros, e em sua coleção de vidrinhos de esmalte, quantos vidros de esmaltes são descartados?, tanta coisa que vira lixo – (re)viramos lixos. A cidade que pulsa fora do mapa. Um encontro, que seja. Ou mesmo aquele desencontro de que jamais saberemos.
A cidade inteira habitando o limiar do mapa, a periferia daquilo que sabemos – pensamos saber.
[aonde uma só conversa é capaz de nos levar?]
Aujourd’hui, fui a uma exposição chamada ficções – título tomado de Borges. No texto, falava da “experiência de outros espaços e tempos para recriar mundos”. Somos nós que criamos o mundo em que vivemos. Está claro: somos nós que inventamos todo o perigo. Nós, (n)a cidade.
E ali, precisamente ali, naquela sala de cinema, pintada de preto, com cadeiras de couro reclináveis, pessoas sentadas, o ar condicionado, as luzes projetando na tela uma imagem em 3D com nossos óculos emprestados, foi ali que ele, despedindo-se da linguagem [e de deus], nos disse: aujourd’hui, tout le monde a peur.
Temos medo do que somos.
Esses nossos corpos, esses nossos desejos, esse mundo que criamos e que tanto nos amedronta, essas pequenas prisões espaciais, esses caminhos conduzidos por vozes de mulheres desconhecidas em aparelhos de GPS, e o taxista não sobe mais até ali, tem medo, a peur.
Mas no meio de tudo isso, de toda essa organização territorial de nossas cidades-corpos, pasó por el espacio un escondido telegrama de amor. A força de uma mensagem que se esquiva, que escapole de toda a argamassa tecnológica em que nos afundamos – nós, à serviço da máquina –, esse telegrama nos diz: a cidade é outra coisa.
Cidade é nosso corpo em movimento, é tudo aquilo que habita o subterrâneo da linguagem, das representações, da topologia, é cada gesto inesperado, cada encontro, cada acidente, é a mensagem de amor que corre por dentro dos fios que arquitetamos – tudo o que margeia o pensado, o planejado.
É, sobretudo, o que permanece indecifrável, aquilo de que não sabemos, que jamais controlamos, os envios que podem nunca chegar, mas que são infinitamente entregues – toda a cidade e(m) nós.