as e às águas do mundo
às vezes, sinto uma solidão espessa, de um recheio estranho – excessos de faltas que, de tão agudas, pesam. é em meu corpo que dói e que suja essa ausência oceânica: saudade do mar.
meus pés, entregues, pisam essa areia úmida, desmancham-se ao levar o restante de meu corpo para a água. traçam um caminho sem regras, porém inevitável. chego à beira, sem pressa, reconhecendo-me feliz, inteiramente feliz, cumprindo esse ritual mais antigo.
as águas do mundo.
um texto de clarice sobre mim, claramente.
quase uma biografia, um espelho, um retrato, um abraço – e lágrima.
olhamos o mar, é o que podemos fazer, a mulher e eu, o eu-mulher.
sem saber, cumprimos uma coragem juntas, entrando no mar – que é palavra e que nos fecunda, nos torna amantes.
a graça nunca será caminhar sobre as águas, mas dentro.
imersas, esquecidas do medo enorme de sermos tão pouco, tão nada enquanto ela, água do mundo, nos engole – salgada e gigante.
Mesmo que o esqueça daqui a uns minutos, nunca poderá perder tudo isso.
clarice fala desse encontro entre mulher e mar, onde ela reencontra a si, imersa. imergir na completa solidão subaquática e silenciosa – mar e texto. não nos cabe falar nem respirar ali, não fomos nós que criamos as regras – imergir parece ser a única opção, diante de toda aquela água. como se nossa solidão também se dissolvesse em contato com o líquido, afinal o mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização.
sou capaz de esquecer de tudo, de tudo, e sorrir com o rosto inteiramente sério e de tornar-me feto dentro de um útero que é também eu.
Nessa hora, ela se conhece menos ainda do que conhece o mar. Sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir. É fatal não se conhecer, e não se conhecer exige coragem.
vivo de não me conhecer.
talvez por isso precise tanto do mar – fatalidade outra.