Da distopia nossa de cada dia
Eu no ônibus, voltando de um longo dia de trabalho. Ar-condicionado. Dei o meu melhor e estou satisfeita. Resumindo: fiz minha parte! Ouvi elogios do chefe e creio estar no caminho certo. Recebo mensagens gentis no meu celular; dos amigos, dos amores. É sexta-feira. Mentalmente, planejo minhas próximas férias e penso no look que usarei no final de semana. Ponho o álbum favorito pra tocar. Coloco meus fones de ouvido. Ainda que eu falasse a língua dos homens, que eu falasse a língua dos anjos, sem amor, eu nada seria. Sinto-me plena; de vida, de planos e afetos. O mundo é bom e eu transbordo amor.
Olho pela janela. Num impulso, retiro os fones de ouvido. Vejo uma mulher negra e magra caminhando pelas ruas. Aparenta mais de setenta anos e carrega uma sacola de plástico grosso na cabeça. Ela equilibra o peso com dificuldade, e suas roupas são sujas e gastas. Está descalça e parece exausta sob o sol forte. Em meio à rua que pulsa nervosa, ela anda vagarosamente. Ela é o inverso; do fluxo, da cidade, de mim. Ou seria ela o meu próprio reflexo? Seria ela o nosso próprio reflexo?
Meus olhos congelam na sua expressão cansada. Vejo o suor que escorre e chega salgado na boca, riscando caminhos na pele já traçada de tempo. Me afundo mais na poltrona do ônibus. O ar-condicionado parece-me ainda mais agradável e sou tomada por uma certeza profunda: jamais uma viagem pra casa me pareceu tão longa. Tenho um ímpeto de... Não. Não.
Desvio o olhar daquela cena e me volto ao celular. Sorrio com as novas mensagens que acabei de receber. É sexta-feira. Estará alta ou baixa a temporada na Ilha Grande? Amanhã devo ir ao aniversário da Marcinha. De vestido, é claro.
Som. Ainda que eu falasse a língua dos homens, que eu falasse a língua dos anjos, sem amor, eu nada seria. Retiro os fones de ouvido. Dou pausa na canção. Coloco novamente os fones. Conecto na rádio FM.