Linha de Montagem
Sim, eu acredito que em todo ser humano há potencialidade para o amor. Mas também é verdade que em todo ser humano também há potencialidade para o ódio. Eis então que me pergunto: qual das duas capacidades é estimulada; pelo capital, pelas mídias, pelo estado? E a resposta me faz ter pena dos meus inimigos.
Sim, a resposta me faz ter pena dos meus inimigos. Eu olho para os lados e vejo o fascismo sempre à espreita, o ovo sendo chocado. Mas a questão é que quem está chocando o ovo não é só o skinhead americano, o candidato à prefeitura ou o pastor evangélico. É o Seu João, que é legal pra caramba, gente boa mesmo. Quem está chocando o ovo é a Dona Maria, aquela mulher super simpática, do sorriso farto e da alegria contagiante. E eu me pergunto então o que aconteceu com João e Maria por esses estranhos caminhos da vida. E eu me pergunto o que não aconteceu.
João nasceu em uma família de classe média, teve acesso à escola. Mas a escola de João estava mais interessada em ensiná-lo matemática (e nos próprios índices de aprovação no vestibular), pois assim João teria mais chances no mercado de trabalho, já que afinal o trabalho liberta. João tornou-se então um bom aluno, um bom graduando, um bom profissional. João não sabe quem ele é. João é frustrado, mas desconhece o por quê. João não sabe que deveria ser feliz na única vida que tem, e por isso não entende aqueles que têm necessidade de luta e de felicidade. João crê que direitos humanos é para humanos direitos. João não vê humanidade no que é diferente dele, porque não o ensinaram a ver. João não enxerga, João apenas vê.
Maria nasceu em uma família religiosa. Maria aprendeu que há um deus único, e que, portanto, todos os outros além do seu são representações do demônio. Maria aprendeu a acreditar, e se só há um deus, só há o meu. Faz sentido, Maria. Maria acredita que bandido bom é bandido morto, porque é isso que aquele jornalista grita na televisão. Se está na televisão, está certo, Maria. Maria tem medo de ser assaltada, de ser morta, de ser estuprada. Maria pede a seu deus pra voltar pra casa em segurança. Maria quer que todos os cracudos morram.
Sim, João e Maria são meus inimigos porque João e Maria são fascistas. Mas eu entendo – eu preciso tentar entender: João e Maria são vítimas da mesma sociedade que eu. João e Maria foram adestrados para isso: para viver de amarras, para odiar o diferente, para querer exterminar a diferença. O que nos separa é que alguns são falhas do sistema. João e Maria não. Atarraxem o parafuso do machismo, a mola do racismo; batam o prego da homofobia! Pronto! João e Maria são produtos perfeitos de uma doente linha de montagem. Mas não esperem, João e Maria, que por entendê-los eu vá me render aos seus dogmas, à sua ignorância, ou vá ser mais serena na luta. Entender o porque do seu ódio só me faz melhorar a estratégia e medir mais a pontaria.
A verdade é que estamos todos no mesmo barco. Todos à deriva numa sociedade pautada pelo capital, pelo lucro; norteada por uma educação desumanizadora. Todos nos tornamos arremedos do que poderíamos ser. Todos nos tornamos tristes versões de nós mesmos. A verdade é que estamos todos no mesmo barco, embora alguns tentem nadar contra a corrente. Nademos! Mas hoje – só hoje – me deixem: eu preciso chorar pelos meus inimigos. Choremos.