O rosto deformado e irreconhecível do Estado democrático
“Somos nós, representados.”
Esta semana, passei por uma banca e vi uma capa de revista que me fez parar. Em letras garrafais, dizia “QUEM SÃO ELES?”. Ora, quem são eles.. quem? Logo estanquei. A imagem lembrava um terrorista ou um bandido, e imaginei que fosse algo relacionado a isto... até ler o subtítulo.
Parei por um momento, com um semi-riso de espanto. “Quem são eles? Como agem? O que pensam? E até onde querem chegar?”. Vamos lá, você também pensou: é hora do Globo Repórter! Um tanto perplexa, abri a revista esperando encontrar um relato testemunhal em primeira mão do que comem estes estranhos seres, ou que língua falam, de onde vêem; em vez disso, vi um desfile emblemático do reacionarismo mais encarniçado, tão engajado em desmoralizar cada aspecto e reivindicação da manifestação que nem sequer tentava esconder sua escandalosa parcialidade.
“Que imagem mais obscura para um propósito tão claro dos manifestantes.”
Resolvi ir até a página da Época no Facebook para deixar registrada minha opinião, e o que vi foram mais de 850 respostas à capa da revista. Vários dos comentários estão espalhados ao longo deste artigo, e mostram a indignação geral diante da estratégia editorial de deslegitimar o movimento popular. Um dos comentários, dito por mais de uma pessoa, me chamou muito a atenção: “Somos nós, representados”. Ele é tão importante porque, conscientemente ou não, tocou num tema sobre o qual já venho há muito refletindo e considero vital para o debate político atual: a questão da legitimidade.
Este tema é a própria fundamentação do regime democrático: o povo, não podendo estar em sua totalidade presente para decidir todas as questões políticas, legislativas, administrativas, jurisdicionais, elege seus representantes – como alguém que passa uma procuração. Aquele indivíduo eleito é o representante do povo – esta expressão já está tão surrada que ninguém reflete sobre seu sentido: ele É o povo. E a partir do momento que o povo não reconhece mais seus políticos como seus representantes, sua legitimidade rui. A própria justificação de seus mandatos perde o sentido, e eles são mantidos por puro formalismo legal. Desta forma, o que nos sobra é um Estado que tem “Democracia” na embalagem, mas não na sua alma.
“Igualitarismo ? Soberania popular? AI QUE MEDO!!! O que será feitos de nossos privilégios? Mariiiiiia!!! Me traz um copo d'água agora e meu Rivotril!”
E o que fazer quando o grande titular do poder, o mandante que passa procurações (algumas levianamente, assinando sem nem ler), resolve que não está satisfeito? Quando ele resolve revogar algumas dessas procurações e mudar os rumos decididos sem sua concordância? O dono da casa está de volta – e ele terá que lutar para reaver o que é seu.
Pois acontece uma situação muito peculiar, se vista em termos práticos: o sistema criado para proteger a democracia impede que a própria democracia floresça. O aparato estatal ganhou contornos perversos ao sufocar manifestações populares justas e legítimas, e sua função – proteger o povo mantendo a ordem – foi totalmente deturpada: proteger a ordem reprimindo o povo. Já a mídia corporativa, sempre alinhada com os interesses dos mais poderosos, dá o tom da sinfonia de repressão e arbitrariedade – vimos diversas manifestações emblemáticas, desde Arnaldo Jabor na Globo, a Época e a Veja, Datena na Band...
“Eles são o Brasil acordando sem gostar do que foi feito enquanto dormia em berço esplêndido (ou nem tão esplêndido assim)”
E pra quem diz que manifestações e protestos não dão em nada... se tivessem pensado assim, os revolucionários do passado não teriam derrubado reis e impérios – a Grã-Bretanha ainda tem um gosto ruim (de chá) na boca desde a Revolta de Boston em 1773 (evento chave para a Revolução Americana) e depois daquele baixinho carequinha indiano; da mesma forma, não teriam sido erigidos regimes democráticos sustentados na defesa de direitos humanos, ou revoluções que derrubaram séculos de imperialismo parasita (cof cof Cuba cof cof).
O Estado democrático está com seu rosto deformado e irreconhecível, e elevam-se vozes a favor de novos legitimados – não mais aquelas figuras distantes, com sorrisos falsos, ternos finos e intenções sombrias. Nos comentários do Facebook, o mais recorrente respondia à capa da revista singelamente: “Eles somos nós”.