#1 “Nada se cria, tudo se transforma”: covers brilhantes
Há músicas que transcendem a si mesmas. Nascem com um rosto próprio, uma silhueta única, um perfume peculiar, trejeitos seus. É uma obra acabada, viva, suficiente em si mesma – até alguém cruzar com ela no ônibus, na lanchonete, numa noite chuvosa, e apaixonar-se profundamente.
Mas não é apenas amor pelo que está diante de si: este alguém ama o que aquela música pode vir a ser. Mais do que um amor que venera, é um amor que a transforma, dando novos traços àquele rosto querido, mesclando sua própria escuridão à sombra de seus versos.
Esta série de artigos trata de covers que ressignificaram e recoloriram de tal modo a música original que saíram de sua sombra para tornar-se mais que um tributo: tornaram-se uma obra prima em si mesma.
Hurt – Johnny Cash
A versão original desta música do Nine Inch Nails, lançada em 1994, tinha uma pegada de punk rock e falava de um jovem usuário de drogas que vê sua vida ser destruída e seus amigos viciados morrerem no processo. Cash a regravou pouco antes de morrer – e sem qualquer dúvida apossou-se da música (He OWNED it, bitches!).
Sem mudar uma palavra sequer, o poder de sua voz grave e velha ressignificou totalmente a música, tornando-a uma elegia de profunda tristeza, melancolia e beleza sobre o tempo e a velhice. É tão gritante a superioridade do cover sobre o original que o Nine Inch Nails passou a tocar a música da forma como Cash a regravou, e o próprio vocalista da banda disse: “The song belongs to Johnny Cash now”.
Once upon a dream – Lana Del Rey
O ballet clássico de Tchaikovsky inspirou a música “Once upon a dream” para o filme da Disney de 1959, versão romântica e apaixonada cantada em dueto pelo casal principal. Neste cover de Lana Del Rey, qualquer traço feliz e enamorado do original se esvai numa paisagem oblíqua e sinistra, que nem de longe remonta a animaizinhos felizes dançando na floresta. Esta nova versão assume tons sombrios e até tenebrosos, com a voz etérea de Lana saindo das névoas de um sonho escuro e impreciso, buscando relembrar... a dream.. a dream...
Curioso como ambas as versões falam do amor, porém sob diferentes ângulos: uma é pura luz e júbilo, falando de sonhos a se realizarem; a outra é treva, falando de um sonho que se realizou... ou um pesadelo.
Sweet Dreams (Are Made Of This) – Marilyn Manson
Aaah, os anos 80! Goes like this: “Vamos pegar uma letra sinistra e perturbadora como Some of them want to abuse you/ Some of them want to be abused e colocar uma batida dançante frenética para bombar nas discotecas!”.
Bem, anos 80. Marilyn Manson, porém, percebeu o seu potencial (eu diria até a própria essência da música) e fez uma versão sinistra e (big surprise!) perturbadora, com uma interpretação condizente – merecem menção seus acréscimos pessoais de loucura à letra (I wanna use you and abuse you... I wanna know what’s inside... you). Um caso em que a versão original falhou em captar a essência da música – e o cover conseguiu.
Man Down – Triggerfinger
O original de Rihanna é um reggae, o que a deixa meio desconectada com uma letra tão grave, que trata do remorso de um assassino. Este cover da banda de rock Triggerfinger tem riffs que lembram Led Zeppelin, deixando a música bem mais pesada e coerente com a letra. O vocalista Ruben Block consegue encorpá-la muito bem, e sua interpretação tornou-a consistente (e bem superior à versão original).
Call me Maybe – Ben Howard
Carly Rae Jepsen, pop feliz e colorido cantado por menininhas apaixonadas, boys trying to chase me, etc. A versão de Ben Howard, muito mais austera, subverte tudo isso, e a letra – que antes falava de uma relação plana e bidimensional de uma garotinha fotolog com uma queda por um estranho – assume tonalidades muito mais profundas e complexas (versos como I’d trade my soul for a wish/ Pennies and dimes for a kiss / Wasn’t looking for this / But now you’re in my way são completamente ressignificados, como se as mesmas palavras falassem de coisas completamente diferentes) (e falam!).
Proibida pra mim - Zeca baleiro
Ao ouvir o original de Charlie Brown Jr., imaginamos um adolescente nos seus 16/17 anos, inconsequente e despreocupado, gamado numa mina. Na versão de Baleiro, a relação é completamente ressignificada e toma novos trejeitos, e o que era uma frase plana e simples como Eu posso te ligar a qualquer hora/ Mas eu nem sei o seu nome ganha outro(s) sentido(s).