Amor, Cólera e Loucura em Marie Vieux Chauvet
Chauvet nasceu em Port-au-Prince. Filha de um senador – este depois teve que fugir para a República Dominicana por conta de perseguição política - e de uma nativa judaica das Ilhas Virgens. Desde cedo, a escritora logo entrou em contato com as raízes desiguais que desde sempre assolavam seu país. Fruto de anos travados contra imperialistas e cidadãos haitianos oportunistas que se aproveitavam do povo, apesar destes possuírem - no sangue de seus ancestrais - a força motora para a transcendente resistência.
Única escritora da sua geração nos círculos literários haitianos. Ela logo se tornaria – pela imensa qualidade do seu trabalho – em uma espécie de líder entre artistas comprometidos em denunciar as causas sensíveis do país, retratar uma realidade cotidiana inaceitável e dialogar com a rica cultura africana que permeava o ambiente criativo da nação.
Podemos citar entre as referências cruciais para a arte e o pensamento de Chauvet, a obra do poeta e ativista haitiano Jacques Roumain. Um dos fundadores do “Revue Indigène” periódico onde publicava poemas, escritos incendiários e manifestos políticos. O que lhe rendeu prisões e exílios - em vários países - por longos anos.
Outro autor fulcral para a construção da obra da escritora Marie Vieux foi o mestre Jacques Stephen Alexis. Este romancista, ativista político, médico, lançou em 1933 o clássico “Le Nègre masqué, tranche de vie haïtianne”, um dos grandes trabalhos da literatura haitiana do século. De formação humanista, em 1942 fundou a revista “La Ruche” onde combatia o regime autoritário do presidente Elie Lescot. Jacques Stephen Alexis teve uma carreira como ativista em âmbito internacional. Apoiado por soviéticos, chineses e cubanos. Em meados de 1961, quando resolveu voltar ao Haiti – país então comandado pelo cruel ditador François Duvalier – foi dado como desaparecido. O governo jamais admitiu seu assassinato.
O talento de Marie Vieux Chauvet despontou ainda na infância. Há relatos de esboços literários e outras manifestações dramáticas, como sua peça mais famosa “La Légende Des Fleurs” lançada com o pseudônimo de Colibri ainda em 1946 - bastante elogiada. Neste período a escritora começaria a trabalhar em seus romances - estes que estão entre as grandes obras de arte da literatura. Sua obra conversava com as intensas temáticas presentes no dia a dia do povo, como mulheres sendo abusados, a opressão política, os rituais vodus, a pobreza, o colonialismo enraizado e as desigualdades sociais em desequilíbrio abismal.
Sua primeira obra prima foi editada em 1954, em Paris, intitulada “Fille d'Haïti”. Para estudiosos, um dos mais importantes escritos da literatura francesa. “Fille d'Haïti” já trazia referência à resistência social, a crítica à classe burguesa e suas opressões entranhadas no cotidiano de Port-au-Prince.
Seu segundo trabalho “La danza sobre el volcán” foi lançado mais uma vez em Paris, 1957. O romance versa sobre a angústia, submissão, um mundo escuro engessado pela corrupção e a pobreza. Para a construção deste romance, a figura histórica de Jacques Vincent Ogé (1750-1791) foi fundamental.
líder mulato que lutou a favor dos direitos civis dos homens de cor, contra a escravização do povo haitiano e em prol de sua emancipação. Vincent Ogé foi medular para a fomentação da revolução Haitiana que culminaria com a independência.
Mas foi certamente com a trilogia “Amour, colère et folie” lançado em Paris em 1968, que Marie Vieux Chauvet entrou definitivamente para a história como uma das mais importantes romancistas da história. Há de se ressaltar que Marie pretendia lançar a trilogia no Haiti mesmo, não obstante, a sinistra ditadura de François Duvalier - conhecido como Papa Doc – tornava o ambiente perigoso para tal publicação. O livro - dividido em três partes - se embrenhava sobre ganância, abusos cometidos pelo estado, marginalização de artistas, humilhação das mulheres, violência sexual e as desigualdades sociais já tão marcantes em outras composições.
Falando um pouco do período negro de François Duvalier entre 1957-1971, este foi mais um capítulo obscuro na história política do país e de sua tendência à ruptura democrática. Mesmo com boa educação – Duvalier se formou em medicina na Universidade do Haiti – e o conhecimento em saúde pública conquistado na Universidade de Michigan nos EUA e da triste realidade do povo, não o impediu de atrocidades – números apontam mais de 30 mil mortos políticos durante seu regime. Com todo este pano de fundo, Marie Vieux Chauvet termina a trilogia – mesmo sofrendo a resistência da família quanto a sua publicação e a envia para a escritora e filósofa Simone de Beauvoir - grande admiradora da arte de Chauvet – que imediatamente manda para publicação pela importante editora francesa Gallimard.
“Amour, col è re et folies” é reconhecidamente uma das obras mais ambiciosas e profundas de todos os tempos. Combatendo as injustiças sociais, a ditadura, a opressão, um manifesto em favor da liberdade, que para Marie Vieux Chauvet , era um poder íntimo. Íntimo e incalculável. Assim como a importância da escritora para toda uma geração de artistas haitianos e de todo o mundo. Críticos não apontam apenas as nuances políticas do romance, mas também, sua qualidade literária, de estrutura arrojada e não linear.
O trabalho posteriormente foi proibido pelo governo e alguns membros de sua família foram ameaçados. As impressões da Gallimard foram interrompidas – a pedido de Vieux – e esta foi impedida de voltar para o Haiti por questões de segurança.
Seu último refúgio foi na cidade de Nova York. Seu ex-marido - Pierre Chauvet - chegou a comprar todas as cópias ainda disponíveis da edição da Gallimard. E algumas permaneciam até 2005 – quando o livro foi republicado - como verdadeiras relíquias perdidas da literatura.
Antes de seu falecimento, em 1973, em NY, a escritora deixaria uma última composição literária a ser publicada, intitulada, “Los depredadores” que veria a luz apenas em 1986. Nesta criação, Vieux Chauvet volta a denunciar os laços políticos do governo com forças estrangeiras empenhadas em sufocar qualquer tentativa de diminuir as desigualdades.
Chauvet escreveu alguns dos mais poderosos livros da história da literatura. A resistência em palavras e gestos. O clamor pelo âmago de um país oprimido. Uma artista atemporal, também do seu tempo, também ciente de seu papel. Uma literatura de vanguarda. Um interior vulcânico, gritando - para os quatro cantos - corrosivas palavras – a fim de desconstruir até as mais doentias desolações sociais e alavancar um país rumo à libertação.
Esta foi Marie Vieux Chauvet e este é o Haiti.